Ben jor, os alquimistas já chegaram!
No Brasil, as décadas sob o regime militar (1964-1985) foram marcadas por uma polarização intensa, onde artistas frequentemente utilizavam suas músicas para criticar o governo e suas políticas. Canções como "Apesar de Você" de Chico Buarque e "Cálice" de Chico Buarque e Milton Nascimento, embora consideradas subversivas na época, refletiam uma visão contestadora que se popularizou entre parte da população brasileira.
Desde 2014, vivemos um momento de turbulência política, mas, a partir de 2019 a turbulência se tornou particularmente jurídica, onde o judiciário brasileiro tem sido alvo de críticas por suas decisões controversas e algumas vezes monocráticas. O ano de 2019 marcou o início de uma série de atos que, sob o manto dos garantidores do “Estado Democrático de Direito” e da democracia, são interpretados como necessários para garantir a ordem e combater o fascismo (ou o que quer que esta palavra signifique atualmente). Por outro lado, existem aqueles que veem o óbvio ululante: o rei está nu.
As canções que outrora criticavam o regime, algumas vezes nos parecem como um rascunho de uma agenda revanchista. Sem perceber, os autores ou intérpretes estavam não apenas falando daquilo que acreditavam, mas quem sabe, prevendo o que posteriormente ocorreria. Teoria da conspiração? Não, apenas estamos usando a imaginação para conseguir lidar com o clima pesado que nos envolve nestes tempos em que o amor não só venceu, mas parece querer esmagar a tudo e a todos.
Em 1974, Jorge Ben (ainda sem Jor), lançava seu 11° LP intitulado “A Tábua de Esmeralda”. A canção que abria aquele álbum era “Os Alquimistas Estão Chegando os Alquimistas”.
Aquela canção nos sugere um padrão de comportamento dos “ilustrados” que dão as cartas no jogo político atualmente:
“Eles são discretos / E silenciosos / Moram bem longe dos homens / Escolhem com carinho / A hora e o tempo / Do seu precioso trabalho / São pacientes, assíduos / E perseverantes / Executam / Segundo as regras herméticas / Desde a trituração, a fixação / A destilação e a coagulação / (...) / Todos bem iluminados / Evitam qualquer relação / Com pessoas de temperamento sórdido”.
Sim, os ilustrados eram discretos e silenciosos, suas ações tantas vezes ocorriam a portas fechadas, mas há que dizer que atualmente nem lutam mais contra o desejo incontido pelos holofotes. Certamente moram bem longe dos homens, qual deles sairia às ruas sem temer a repulsa do populacho ignaro? Como esquecer a fala de um deles, um pouco mais contido, desafiando outro um pouco mais audacioso? “Saia à rua (…), saia à rua”. Quem sabe aquele mais audacioso saísse às ruas, mas à Rua do Salitre, em Lisboa, uma das mais caras daquela cidade. Quem sabe…
Certamente têm inegável perseverança, elaborando secretamente as regras herméticas que trituram opositores, destruindo capacidades de ação ou reação, em razão da supremacia de suas posições. São iluminados e, qualquer um que obstrua o sagrado caminho da Democracia, terá a marca da sordidez. Os sórdidos são de antemão perdedores, e na linguagem rasteira… manés.
Mas nem só de Jorge viveu a história musical daqueles 21 anos. Em 1968 tivemos o Festival Internacional da Canção e Geraldo Vandré, artista muitas vezes mal compreendido acabou conquistando o segundo lugar daquela disputa. Sua canção “Pra não dizer que não falei das flores” é uma das mais poéticas e menos militantes dentre as que surgiram naqueles 21 anos. Em 2024 não seria difícil ver qualquer coach ensinando
“Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer”.
É quase uma fala de palestra de autoajuda.
Geraldo Vandré não errou nem estaria errado atualmente em um quesito: “Há soldados armados / Amados ou não / Quase todos perdidos / De armas na mão”. É verdade, há soldados amados e outros nem tanto, mas sem um braço forte e uma mão amiga que os conduza, podem parecer perdidos, sem alma. Mas por outro lado, falharia miseravelmente se mantivesse a visão: “Nos quartéis lhes ensinam / Uma antiga lição / De morrer pela pátria / E viver sem razão”. Geraldo, Geraldo… Quanto tempo precisaremos viver para entender que, a defesa de uma ideia cria a necessidade de instalar uma instituição que a represente. A criação de uma instituição obriga à formação de um corpo de servidores, defensores da ideia inicial. Mas em poucos anos, os servidores militarão mais no sentido de preservar suas carreiras e vantagens dentro da instituição, que defender a ideia inicial inspiradora da instituição. E assim a ideia se perde na burocracia e nos interesses pessoais. Nas instituições tacitamente é ensinado que defender a carreira, os títulos, as honrarias é o Monte Castelo a ser conquistado, ainda que publicamente a honrada ideia de morrer pela pátria permaneça encimando muitos portais.
Francisco Buarque de Holanda, o Chico, letrista renomado marcou época. Aqueceu o coração de muitas jovens militantes com seu cantar desafinado em suas letras bem elaboradas. Um bom exemplo é a canção “Apesar de Você”, lançada em 1970 e que tem um lugar especial na lista de obras de “resistência” pela atualidade de sua mensagem.
“Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão, não / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão (...)”.
Chico, eu não ousaria dizer quem é “Você”, penso que já abusei demais do risco, mas ninguém duvida que em 2024 “Você” é quem manda e falou... tá falado. Discutir pode levar à visita matinal de uma bela Blazer preta. Em razão disso minha gente também fala de lado e olha para o chão. Chico, “Você” inventou esse estado de coisas e sim, até o horizonte está bem escuro.
Chico, às vezes fico me perguntando: será revanchismo? Será que o seu grupo, aquele dos anos 60, será que querem pagar na mesma moeda? Se for, em que vocês seriam melhores que os seus antigos algozes? Estou exagerando Chico? Leia o que você cantou...
“(...) Quando chegar o momento, esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido, esse grito contido / Este samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza de desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada nesse meu penar (...)”.
Não apenas dobrado, esses juros sobre juros estão tornando a suposta dívida impagável. Neste olho por olho, qualquer dia seremos um país de cegos. Ou já somos, Chico.
Seguindo na linha produtiva de Chico, a canção chamada “Meu Caro Amigo”, última faixa do lado B do LP “Meus Caros Amigos” de 1976 é no mínimo interessante. Nela Chico cantava para seu amigo Augusto Boal em tom de confidência o seguinte:
“(…) Muita mutreta pra levar a situação / Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça / Que a gente vai tomando e também sem a cachaça / Ninguém segura esse rojão (…)”.
E que situação Chico! São muitas mutretas atualmente! Só desculpe não poder te oferecer a cachaça, porque com o aumento do imposto sobre bebidas alcoólicas ficará difícil, mas creio que em Paris você não encontrará dificuldades em degustar, não é mesmo? Agora no quesito teimosia, continuamos os mesmos, teimamos em ser livres, mas não por pirraça, mas por direito natural.
Ainda outra vez Chico Buarque, agora em parceria com Milton Nascimento, o Bituca, lançou também em 1978 uma das mais impactantes mensagens contra a censura, a canção “Cálice”. Um trocadilho com a ordem, cale-se, vinculando ao cálice amargo que Nosso Senhor Jesus pediu que passasse Dele. Uma mensagem direta e forte, sem dúvida.
“De muito gorda, a porca já não anda (cálice) / De muito usada, a faca já não corta / Como é difícil, (Pai) Pai, abrir a porta (cálice) / Essa palavra presa na gargantaEsse pileque homérico no mundo / De que adianta ter boa vontade? / Mesmo calado o peito, resta a cuca / Dos bêbados do centro da cidade”.
Mas Chico, a porca é ainda mais gorda em 2024. Me refiro ao Estado brasileiro, que imenso como a porca de sua canção, é inerte. E pervertendo a ordem natural das coisas, suga de seus leitões o divino leite que lhes manteria fortes, saudáveis e autônomos. A faca (ou espada) da justiça também é cega, posto que não corta seus privilégios nem daqueles que a ela aderem. Realmente, é quase impossível abrir as portas da burocracia, imagine então a porta da sala de totalização dos desejos dos brasileiros. Chico, nosso mundo parece ter acordado de um pileque homérico, daqueles! A dor de cabeça, o mal-estar, a sensação de ter cometido o mesmo erro pela terceira vez. O clima é tão ruim que muitos se perguntam se vale a pena insistir em ter boa vontade. Mas mesmo calada a voz, resta o patriotismo na Paulista e em Copacabana. Parar? Só depois do coração.
Em 1976 o Brasil também vibrava com a voz forte e a emoção rasgada de Elis Regina. Ah, a nossa Pimentinha! Naquele ano, Elis lançava o LP “Falso Brilhante” e dando voz a Belchior ela interpretava de modo inigualável a canção “Como os Nossos Pais”:
“(...) Hoje eu sei que quem me deu a ideia / De uma nova consciência e juventude / Tá em casa guardado por Deus / Contando o vil metal / Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos / Nós ainda somos os mesmos e vivemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Como os nossos pais (...)”.
Ah Elis, se você soubesse quanto desse vil metal pode caber em algumas malas de um apartamento em Salvador. Ah se você tivesse visto quanto dinheiro um simples “Lava-Jato” poderia trazer de volta ao nosso país, tua dor teria sido incalculável. Maior até que aquela que você experimentaria ao ver seus contemporâneos usufruindo as benesses do capitalismo e as belezas da Europa, em seus apartamentos em Paris. Entretanto, discordo de você em relação a viver como os nossos pais. Eles viviam menos e melhor que nós, num mundo cheio de injustiças e contradições é verdade, mas onde Deus, a pátria e a família eram a base e sustentação dos sonhos daquela geração. Mas Elis, Deus continua guardando a todos, até que venha o dia de Sua Justiça, não se preocupe.
Já em 1979 no LP “Essa Mulher”, interpretando a obra de João Bosco e Aldir Blanc “O Bêbado e o Equilibrista”, Elis cantava com inspiração:
“(…) Que sonha com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete / Chora a nossa pátria, mãe gentil / Choram Marias e Clarisses / No solo do Brasil / Mas sei que uma dor assim pungente / Não há de ser inutilmente / A esperança dança / Na corda bamba de sombrinha / E em cada passo dessa linha / Pode se machucar / Azar, a esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que continuar (…)”.
É verdade Elis, continuamos sonhando, não mais com a volta do “Betinho”, mas com a volta do Allan dos Santos, do Paulo Figueiredo, do Rodrigo Constantino entre outros. Nossa Pátria Mãe Gentil continua chorando por seus filhos, não apenas pelas Marias e Clarisses, mas pelos Clezões e Eustáquios também. A dor é verdadeiramente pungente, mas como você estava certa, a esperança ainda se equilibra e segue adiante afinal, o show brasileiro da vida real nunca para e desistir não é uma opção.
Este texto é dedicado a todos os artistas militantes, de antes e de agora. Flautistas de Hamelin que tocam, cantam e encantam as multidões. De onde vêm as trinta moedas que vocês recebem por pagamento? Eis a questão final, conduzem por quem?
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. III N. 43 – ISSN 2764-3867
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