“Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”
Com o refrão de um dos grandes sucessos de Fernanda Abreu, lançado em 1992, iniciamos nossa reflexão. O ritmo envolvente da música não é suficiente para esconder a verdade estampada em sua letra.
Vamos falar da Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que ostenta este título oferecido por D. Pedro I. Não trataremos da parte de sua história que deu causa a tão honorífico título, mas de seu ocaso. Que cataclismos poderiam ter levado uma das mais visitadas cidades do Brasil, que entre 1763 e 1960 foi Distrito Federal, por consequência a vitrine e câmara de eco para costumes, cultura e política, a mergulharem uma espécie de caos purgatorial para seu povo?
A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada por Estácio de Sá em primeiro de março de 1565, como dissemos foi Distrito Federal até que em 21 de abril de 1960, com a inauguração de Brasília, iniciou uma triste jornada de decadência e imoralidade administrativa. Entretanto, a transferência da Capital para Brasília não seria e de fato não foi suficiente para provocar os danos que ora observamos.
1974 guardaria uma nova punhalada na alma da antiga terra de kari’oka. A fusão do Estado do Rio de Janeiro com o Estado da Guanabara deu origem a configuração do Estado conforme conhecemos hoje, relegando o importante Estado à condição de cidade. Ainda assim, aquele rebaixamento também não bastaria para afetar a moral e a importância do Rio de Janeiro. Se não foram as mudanças de status administrativo que soterraram a cidade e sua história, seus administradores cumpririam com eficiência a nefasta tarefa.
Iniciaremos a lista de governadores com Antônio de Pádua Chagas Freitas, ou Chagas Freitas como era conhecido. Advogado e jornalista, foi governador da Guanabara, eleito indiretamente para a gestão 1971 a 1975 e eleito governador do Estado do Rio de Janeiro entre 1979 e 1983. Sua característica fundamental era o clientelismo. Sua aliança com o funcionalismo público, assim como o aparelhamento promovido pela distribuição de cargos, além do uso de seu jornal (O Dia) para direcionamento da opinião pública (segundo seus analistas), formataram o modelo de gestão que seria aplicado e ampliado nos governos posteriores.
Em 1979, retornando de seu período de exílio, Leonel de Moura Brizola, figura conhecida na política nacional no período anterior ao regime militar, em função de sua ativa participação de apoio a João Goulart (seu cunhado), retoma sua atividade política.
Brizola lançou-se candidato ao governo do Estado do Rio em 1982, tendo como vice o antropólogo e sociólogo Darcy Ribeiro. Brizola, de histórico populista, estatista e claramente de viés esquerdista, getulista de primeira hora e presidente fundador do Partido Democrático Trabalhista (desde 1986 associado à Internacional Socialista); aliado a Darcy Ribeiro, que trabalhara junto a Anísio Teixeira (do qual falamos brevemente em nosso primeiro artigo), e que fora Ministro da Educação de João Goulart inauguraria o que o próprio Brizola chamou de “socialismo moreno”. O Rio de Janeiro esteve entregue à ideologia marxista, com sotaque demagógico-populista-tropical entre 1983 e 1986.
Sob Brizola o Estado do Rio de Janeiro assistiu ao crescimento e fortalecimento do Comando Vermelho, ante a política de governo do não enfrentamento. Da mesma forma, a favelização e a desordem urbana foram fortemente aceleradas com a nova mentalidade brizolista que defendia nas palavras de Darcy Ribeiro: “favela não é problema, é solução”.
Talvez sua marca mais visível até os dias de hoje sejam os CIEPs. Escolas idealizadas por Darcy Ribeiro que, oferecendo educação em período integral, alimentação e cuidados médicos básicos ao alunado fluminense, era financeiramente insustentável para um estado que já sofria com a “elefantíase administrativa”, o inchaço da máquina que não tendo combustível financeiro, sucumbiria em pouco tempo.
Sucedendo a Brizola, assume o Palácio Guanabara o senhor Wellington Moreira Franco para o período entre 1987 a 1991. Para falar de Moreira é necessário antes falar de seu sogro, Ernani do Amaral Peixoto, ex-interventor indicado por Getúlio Vargas para o Estado do Rio entre 1937 e 1945 e governador entre 1951 e 1955. Amaral Peixoto mantinha o estilo populista ao modo de seu sogro, Getúlio Vargas. Aparentemente ter sogros influentes era e continuaria a ser passaporte para boas posições políticas.
Moreira, que na juventude fora liga à Ação Popular que era um grupo radical de base marxista, era fruto do galho de Amaral Peixoto, recebendo indiretamente a seiva do troco getulista, sua demagogia já ficava demonstrada em uma de suas promessas de campanha onde afirmara “A promessa de acabar com a violência absoluta (no Rio) em seis meses não é absurda, porque o índice de violência é fruto da cumplicidade do governo com a criminalidade”. De fato havia algo de verdadeiro em sua premissa, a política do não enfrentamento soava como cumplicidade.
Moreira não só não cumpriu sua promessa, como também viu acelerado o drama iniciado por Brizola. O Rio de Janeiro, já sufocado pelas políticas de governo com forte tendência ao apadrinhamento das classes mais necessitadas, o que de modo algum sugere a solução de seus problemas, mas antes a manutenção de sua condição subalterna e de apoio útil; perdia também grandes empresas que já na década de 90 fugiam do sufoco fiscal e da criminalidade em franca ascensão.
O sucessor de Moreira Franco foi o ex-prefeito do Rio, ex-filiado ao PDT de Brizola, advogado defensor de presos políticos, e candidato pelo PSDB Marcello Nunes Alencar. Apesar de seu passado, Alencar promoveu privatizações como nos casos da CERJ, BANERJ, CONERJ e Flumitrens, tendo também extinto a Companhia de Transportes Coletivos do RJ (CTC-RJ).A linha de privatizações de seu governo (1995 a 1998), apesar de importantes, não desviou o Estado da rota seguida desde 1983. Os cupins da corrupção, os corporativistas, os narco-terroristas seguiam destruindo a beleza e riqueza da Mui Leal Cidade, deixando um rastro de caos.
Em 1999 Alencar é sucedido por Anthony Willian Matheus de Oliveira, o Garotinho (1999 a 2002). Este abraçou no início de sua carreira política a Juventude Socialista através de seu partido, o PDT. A filha do político de Brizola, como fruto do brizolismo, não cairia longe de sua árvore. Populista e demagogo como seu inspirador, seguiu a receita da manutenção da pobreza, utilizada como sustentáculo político. A criação dos conhecidos restaurantes populares e também do cheque cidadão exemplificam bem a questão. Aliás, sobre o Cheque Cidadão, em sua época pairaram denúncias e suspeitas de favorecimento e sua utilização por parte de lideranças religiosas, que supostamente distribuíam os cheques em seus redutos religiosos em troca de apoio político.
Em 2002 Garotinho se afasta do cargo para concorrer à eleição presidencial. Deixa em seu lugar Benedita da Silva (PT), dando tons ainda mais vermelhos ao Estado. Benedita, sem grandes dotes, apenas ocupou a cadeira de governadora porém, o governo pareceu acéfalo em seus poucos meses de pseudo-gestão. As questões sociais, econômicas, a criminalidade e a desordem seguiam sem combate. Mais interessados com os aspectos exteriores da gestão pública, os governos se sucediam repetindo as velhas fórmulas da esquerda brasileira: corrupção, populismo, clientelismo, demagogia e destruição. Até aquele momento o cerne da questão não era tratado.
Rosa Barros Assed Matheus de Oliveira, a Rosinha Garotinho foi eleita para o período entre 2003 e 2006 substituindo Benedita da Silva. Na verdade pouco há que se acrescentar sobre sua passagem pelo governo do Estado, sendo esposa de Garotinho, foi de um continuísmo óbvio e constrangedor. Deixou um vácuo de gestão, se limitando a manter o que já fora feito. Tanto Rosinha quanto Garotinho enfrentaram posteriormente impugnações de candidatura, denúncias diversas, processos e, prisão.
Um de seus atos finais como governadora foi a convocação de todo o cadastro de reserva de concurso público para o magistério. Esta medida pode ser encarada como necessária para o bom funcionamento da estrutura educacional mas, provocou oneração brutal da folha de pagamento de seu sucessor, visto que foi executada de uma só vez.
O Rio de Janeiro estava a apenas mais um passo do abismo de onde ainda hoje não conseguiu sair.
Apoiado pela família Garotinho, o governado releito para o período entre 2007 e 2010 (reeleito até 2014) foi Sérgio Cabral Filho. De família ligada à esquerda intelectual, tendo sido seu pai, o jornalista e crítico musical Sérgio Cabral um dos fundadores do periódico O Pasquim. Iniciando sua carreira pelo PMDB, dirigiu a Companhia de Turismo do RJ na gestão Moreira Franco, foi deputado estadual por três mandatos, presidente da Alerj e finalmente governador do Rio. Não trataremos do seu início brilhante, mas apenas e de forma breve da marca que deixou após sua gestão. As grandes obras, deixaram rastros de superfaturamento, corrupção, malversação, formação de quadrilha entre outras acusações e condenações que sob Cabral, destruíram a economia fluminense. A Operação Lava Jato descortinou um panorama, que ainda que não fosse novo, era mais assustador e escandaloso do que poderia supor os mais pessimistas observadores da história. Cabral elevou a corrupção a níveis megalômanos. Seus governos levaram ao ocaso de um importante estado, que já fora influente e bem administrado.
De suas obras ainda vemos os esqueletos, a incompletude e a degradação, testemunhos do quanto nos falta aprender com nossa história.
A renúncia de Cabral em 2014 para concorrer ao governo federal, entregou o Estado a seu vice, o senhor Luiz Fernando Pezão. De seu governo também pouco falaremos, pois pouco há que se falar. Da mesma forma que Benedita da Silva e Rosinha Matheus, Pezão apenas ocupou a cadeira de governador, repetindo à exaustão as mesmas fórmulas e comportamentos. Sua eleição para o governo do Estado para o período entre 2015 e 2018 funcionou como um estado febril em um corpo em estado terminal. Sua inépcia e seu grotesco despreparo, mais que uma causa para a tragédia, eram sintomas de um quadro ainda mais grave: o Estado definhava moral e economicamente a olhos vistos.
A base estruturada por Chagas Freitas, associada à sucessão de desgovernos de viés esquerdista, em seus mais diversos tons, desde Brizola a Pezão, mostram que não tínhamos nem mesmo em nível regional a organização de movimentos conservadores que pudessem fazer frente à esquerda. Sucessivos apadrinhamentos políticos, aparelhamento da máquina administrativa e a manutenção do regime oligárquico destruíram as possibilidades que este Estado possui.
É importante explicar que a esquerda não se caracteriza pelo seu discurso nem pela sua ideologia, mas antes pela sua visão de mundo. Ainda que não se possa classificar os governadores citados como socialistas em termos ideológicos, seus comportamentos políticos encarnavam com precisão a forma de conquista e manutenção do poder de qualquer governo socialista. Ainda hoje, muitos negam com veemência qualquer alinhamento ideológico à esquerda, ignorantes de serem instrumentos e usufrutuários daquela ideologia nefasta.
O Rio de Janeiro é hoje um purgatório onde seus cidadãos pagam pelos crimes de não interessarem-se por política, entregarem-se de bom grado às políticas assistencialistas e omitirem-se diante da desordem social e urbana como se nada tivessem com o problema. O caos é nossa herança e legado.
Que tenhamos a sabedoria para buscar reformar nossa própria visão de mundo e também o nosso Estado, mediante melhores escolhas no futuro.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. I N.º 03
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