Um general sob Custódio

No último dia 14 de dezembro, não fomos tomados de surpresa ao saber da prisão do general da reserva Walter de Souza Braga Netto. General de quatro estrelas, ex-secretário nacional de Relações Institucionais do Partido Liberal, ex-interventor federal na segurança pública do Rio de Janeiro, ex-ministro da Casa Civil, ex-ministro da Defesa no governo Bolsonaro e ex-candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro. Infelizmente, poucas coisas têm nos causado espanto nos últimos tempos.
O que teria motivado a prisão? Supostamente, Braga Netto teria sido um dos mentores da tentativa de golpe no fatídico dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Dessa forma, o militar da reserva — que não comandava nenhuma tropa — seria considerado o mentor intelectual de um golpe que, na prática, não aconteceu por vários motivos. O principal beneficiado com o sucesso da “intentona” — Bolsonaro — não queria que ela se concretizasse, conforme depoimentos tomados pela Polícia Federal. Além disso, os participantes do movimento não teriam conseguido táxis para se deslocar em Brasília. Grande parte da multidão que se aglomerava diante dos prédios públicos e poderia ser usada como "massa de manobra" para o golpe entrou, de boa-fé, em ônibus "convidados" pelos próprios militares (a serviço do governo), sendo presa em seguida. Do ponto do Estado, Braga Netto foi preso por planejar atos preparatórios de uma revolta que atentava contra o Estado democrático de direito. Não queremos entrar nos méritos da questão, discutindo se a prisão foi moral ou legalmente correta, deixemos essa tarefa espinhosa para o Brasil do porvir.
Como lemos nas mídias sociais, nunca na história do Brasil um general de quatro estrelas havia sido preso. Mas será que nunca um militar de patente tão elevada foi preso nesta República tropical? Não foi um general, mas um almirante com um histórico glorioso de serviço ao Brasil, que também foi preso. Quem? O almirante Custódio de Mello. Por quê? Por participar de uma revolta que atentava contra o Estado democrático de direito. Teremos aqui um precedente histórico? Será?
Custódio José de Mello nasceu em Salvador, Bahia, em 9 de dezembro de 1840. Filho de João Custódio de Mello e Rita de Mello, assentou praça de aspirante a guarda-marinha em 01 de março de 1856. Desde jovem, demonstrou uma grande aptidão para a carreira naval, destacando-se nos estudos e em várias missões atribuídas a ele.
Durante sua carreira, Custódio de Mello participou de importantes missões navais, sendo promovido rapidamente por seus méritos. Em 1858, foi nomeado guarda-marinha e, já como primeiro-tenente, teve um papel ativo na Guerra do Paraguai (1864-1870), destacando-se em várias batalhas navais. Suas atuações lhe trouxeram reconhecimento e promoções, chegando ao posto de capitão-de-fragata em 1874.
Após a Proclamação da República e com a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca, Custódio de Mello foi nomeado Ministro da Marinha em 23 de novembro de 1891, no primeiro dia de governo de Floriano Peixoto. Implementou diversas reformas e modernizações na Marinha, alinhando-a aos padrões internacionais da época.
Ele é mais lembrado por sua participação nas Revoltas da Armada, duas rebeliões navais nos primeiros anos da República. Custódio de Mello, promovido a contra-almirante no governo de Deodoro da Fonseca, sendo inicialmente defensor do governo, acabou apoiando os revoltosos e participou da primeira rebelião.
As raízes da primeira Revolta da Armada podem ser traçadas até novembro de 1891, quando o marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do Brasil, fechou o Congresso Nacional após falhar em negociar com as bancadas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, estados produtores de café. Liderados pelo contra-almirante Custódio de Mello, unidades da Marinha se sublevaram e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro. Deodoro renunciou em 23 de novembro de 1891, e o vice-presidente Floriano Peixoto assumiu a presidência, mas não convocou eleições presidenciais, como previa a Constituição, sendo acusado de ocupar ilegalmente a presidência. Assim, Custódio de Mello se rebelou junto a seus pares para defender o Estado democrático de direito.
Em 1892, um grupo de 13 oficiais-generais divulgou um manifesto exigindo a convocação de eleições. O presidente Floriano Peixoto declarou estado de sítio e ordenou que os líderes fossem presos. Em 6 de setembro de 1893, Custódio de Mello liderou outra rebelião, iniciando a primeira Revolta da Armada na Baía de Guanabara. A revolta incluiu combates intensos, como o bombardeio de fortes fluminenses e confrontos em Niterói e na Ilha do Governador.
Em dezembro de 1893, Custódio de Mello tentou unir-se aos federalistas no sul do país, mas enfrentou derrotas significativas. A Fortaleza de São José foi destruída, e os rebeldes, com pouca munição e víveres, foram derrotados. A capital do estado do Rio de Janeiro foi transferida para Petrópolis devido aos bombardeios.
O governo federal adquiriu navios de guerra para enfrentar os rebeldes, e com o apoio do Exército e do Partido Republicano Paulista, a Revolta da Armada foi sufocada em março de 1894. Os rebeldes se refugiaram em navios portugueses, terminando a revolta.
A Revolução Federalista continuou no sul, onde Custódio de Mello se uniu a Gumercindo Saraiva. Eles tomaram a cidade da Lapa, mas as tropas do governo continuaram a avançar. Em 16 de abril de 1894, o encouraçado Aquidabã foi torpedeado. Custódio de Mello tentou desembarcar em Rio Grande, mas foi derrotado, refugiando-se na Argentina.
Como sabemos, quando se pretende analisar os eventos históricos, nada melhor que consultar as fontes primárias, ou seja, ler a narração em primeira mão, diretamente da pena daqueles que dela participaram. Pois vamos ler o que Custódio de Melo tinha a dizer sobre a revolta que ele liderava. O texto segue em sua redação original:
“No manifesto que dirigi á Nação allego a conducta inconstitucional do Sr. Vice-presidente da Republica e a sua política anti-patriotica e sanguinária nos Estados, principalmente no Rio Grande do Sul. Todos os navios e as forças navaes d’este porto se collocaram ao lado da Constituição, que defendo. A única fracção d’essas forças que hesitara, a fortaleza de Vilegaignon acaba de communicar-me que tomou a resolução de não hostilizar-me e de assim o haver declarado no quartel-general da armada.
Toda a população da Capital Federal é favorável á nossa causa, que é a causa nacional. A propria guarnição de terra, que por espírito de classe, parece apoiar o Sr. Vice-presidente, está tacitamente dividida, e só quem não tem um conhecimento exacto do espírito tambem de classe dominante na marinha nacional e de patrióticas tradições, poderá duvidar de sua idealidade de conducta em face da Constituição violada. A vossa resolução de imitar a nobre e patriótica resolução da fortaleza de Villegaignon tirarão do Sr. Vice-presidente da Republica o ultimo pretexto para continuar a manter-se ilegalmente no governo da Nação.
Nestas condições, eu resolvi convidar-vos a vos pronunciardes entre a Constituição e o seu violador, entre a continuidade do derramamento de sangue de irmãos e a pacificação da família brasileira, reiterando aqui a declaração que fiz no meu manifesto de que não quero o poder. Aguardo até hoje á tarde a vossa resolução para servir-me de governo”. (Custodio José de Mello, Gazeta de Notícias – 8 de setembro de 1893).
A Revolta da Armada terminou com a morte de Saldanha da Gama em junho de 1895. Floriano Peixoto governou até novembro de 1894, sendo sucedido por Prudente de Morais, o primeiro presidente civil do Brasil.
O Decreto nº 310, de outubro de 1895, anistiou os envolvidos nos movimentos revolucionários, permitindo o retorno de Custódio de Mello ao Brasil. Ele chegou ao Rio de Janeiro em novembro de 1895. Todavia, essa não era ainda a solução definitiva para os problemas de Custódio de Mello. Durante o governo de Campos Salles, o contra-almirante foi designado para assumir uma comissão militar no estado do Amazonas. Essa ordem, vinda do chefe das Forças Armadas, não poderia ser desobedecida. No entanto, não eram esses os planos de Custódio. Com sua recusa, a prisão foi decretada, e ele foi conduzido à Ilha das Cobras (RJ). Embora tenha permanecido preso por pouco tempo, sua recusa em obedecer a uma ordem do presidente legalmente eleito não passou impune. Assim, tivemos um contra-almirante preso em nossa história. Ah os precedentes históricos!
Custódio José de Mello é lembrado como um militar dedicado e um homem de princípios, que lutou pelo que acreditava ser o melhor para o Brasil, mesmo que suas ações tenham levado a confrontos diretos com o governo. Sua trajetória ilustra as tensões e os desafios enfrentados pela jovem República brasileira na busca por estabilidade e legitimidade.
As trajetórias dos dois militares, Custódio de Mello e Braga Netto, são marcadas pelos bons serviços prestados à nação, mas se separam pelas razões de suas prisões. Resguardadas as devidas proporções e eventos, as ações de um estão sob o exemplo do outro. Braga está sob Custódio, porém, enquanto o primeiro foi preso por suas ações (recusar uma ordem legal e direta de seu superior), o segundo foi preso pelo que supostamente pretendia fazer (mas nunca chegou a realizar). Em ambos os casos, buscavam defender, e não atentar contra o Estado democrático de direito. Eis que temos à nossa frente um Brasil de histórias dignas de uma pintura de Salvador Dalí: histórias surreais.
“A liberdade nunca está a mais de uma geração de sua extinção. Não a transmitimos aos nossos filhos pelo sangue. Devemos lutar por ela, protegê-la e entregá-la a eles para que façam o mesmo.” (Ronald Reagan, 40° presidente dos Estados Unidos).
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 49 – Edição de Dezembro de 2024 - ISSN 2764-3867
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