Caxias, O patrono e as melancias
O Exército brasileiro é conhecido por ter sido ao longo de sua história, o berço de incontáveis exemplos de bravura, patriotismo e abnegação. No dia 7 de maio de 2024, completaram-se 144 anos desde a morte de um dos mais importantes personagens da história do Brasil: Luís Alves de Lima e Silva, conhecido por nós como o duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro. Mas, aparentemente, o Brasil, tão pródigo de nomes memoráveis, vem esquecendo o velho duque caxiense.
Tanto intransigente quanto conciliador, o duque de Caxias foi visto como herói por alguns e como genocida por outros. Compreendidas as incompreensões, chegou o momento de se entender a sua verdadeira importância histórica.
"Há muito que narrar", Escragnolle de Taunay começava desta forma seu discurso diante do caixão de Luís Alves de Lima e Silva. Realmente, sua vida foi cheia de eventos significativos, entrelaçando-se com a própria trajetória do Império do Brasil. Em 1822, ano da independência, era tenente, o primeiro grau do oficialato; atingiu o auge como militar e recebeu o título máximo de nobreza durante a Guerra do Paraguai, quando o Império demonstrou sua maior força, e faleceu em 1880, no período em que simbolicamente o Império começava a enfraquecer.
Em 25 de agosto de 1803 nascia Luís Alves de Lima e Silva, na fazenda São Paulo, na Baixada Fluminense, no atual município de Duque de Caxias, que naquela época apresentava características de região interiorana, bastante distinta da província do Rio de Janeiro. Nasceu em uma área predominantemente agrícola, que ainda produzia café, laranjas, farinha de mandioca, entre outros produtos para a subsistência da população local, e era descendente de uma família com tradição militar.
Como tenente, foi rapidamente incorporado ao Batalhão do Imperador, subordinado diretamente a Pedro I. Combateu na Bahia em 1823 as tropas do general Madeira, leais a Portugal. Foi então promovido a capitão, e enviado ao sul para lutar contra as tropas de Buenos Aires na Guerra Cisplatina (1825-1828), pela posse da margem Oriental do rio Uruguai. Terminada a guerra, foi promovido a major e voltou à corte, novamente no Batalhão do Imperador, onde experimentou uma situação peculiar que revelou sua personalidade. Em 1831, seu pai, Francisco de Lima e Silva, que era então comandante das forças militares da capital, integrou o movimento contra a postura autoritária de D. Pedro I. O Imperador então perguntou ao jovem major Lima e Silva sobre sua postura diante daquela revolta, e a resposta foi que entre o amor a seu pai e o dever para com a coroa, ficaria com a coroa. Aquela resposta agradou ao imperador, que o dispensou de lutar contra os revoltosos, argumentando que não desejava derramamento de sangue brasileiro. Em verdade o Imperador buscava evitar que pai e filho estivessem lutando em lados opostos, o que na hipótese mais piedosa causaria um forte desconforto familiar, enquanto que na pior delas, poderia provocar uma tragédia em família. Mais tarde, Caxias teria dito que entre os riscos de praticar uma injustiça e o de haver desordem, preferia o primeiro a qualquer outro.
Já coronel, Lima e Silva assumiu a Presidência e o comando militar do Maranhão em 1831, com a missão de acabar com a revolta Balaiada, movimento que era caracterizado por estar permeado de questões sociais. Após derrotar os rebeldes, tendo morrido o líder balaio Manuel Francisco do Anjos Ferreira, o coronel Lima e Silva anistiou cerca de 3 mil deles. Em 1847, Domingos José Gonçalvez de Magalhães escreveu, na sua “Memória Histórica da Revolução da Província do Maranhão”, que Lima e Silva se portou com grande dignidade, e conquistara o respeito da população, agindo no sentido de impedir as arbitrariedades de funcionários do governo local, contra os políticos de oposição.
Fica revelada aqui uma faceta de Lima e Silva, a do grande conciliador, muitas vezes ofuscada pela figura do “pacificador”. Apesar de ter sido de fato um elemento de pacificação, esta dimensão foi exagerada por autores tanto no contexto civil quanto no militar. Aqueles autores buscaram dar ênfase à atuação de Caxias na repressão a rebeliões provinciais, o que formataria uma justificativa acadêmica para a centralização política e o controle da atuação da oposição, tanto no Estado Novo (1937-1945) quanto no regime militar posterior a 1964. Ou seja, em momentos de crise, o uso da força seria justificável como uma via para a construção da paz. Caxias era firme na defesa da ordem constituída, mas, a partir do momento em que se via em posição de vantagem sobre os rebeldes, buscava conciliar os rebelados, procurando integrá-los, evitando a desumanidade tão comumente dirigida aos prisioneiros e ainda, concedendo-lhes anistia.
Analistas e mesmo líderes dos períodos autoritários, foram quase unânimes em apresentar à opinião pública um perfil do duque de Caxias disciplinador, mas foram bem menos explícitos quanto ao duque de Caxias disciplinado, um militar obediente ao poder civil. Este comportamento fica patente em seus atos e declarações, como a que fez ao deixar a Presidência do Maranhão: “Sou militar e, como tal, sempre obedeci e obedecerei às autoridades legalmente constituídas”. Cerca de vinte anos depois, na sessão do Senado de 19 de agosto de 1861, reforçou seu alinhamento firme à obediência e à ordem, ao dizer que “em toda minha vida tomei por norma obedecer sempre, sem hesitar, as ordens do governo”. Em sua forma de ver, o poder militar subordinava-se ao poder civil, e a grandeza do país estava vinculada à ordem e ao fiel respeito às autoridades do Estado.
Como forma de reconhecer sua importante atuação na repressão à Balaiada, Lima e Silva recebeu o título de barão de Caxias em 1841, passando a brigadeiro e sendo eleito deputado pela província do Maranhão. Por volta de 1842, derrotou as revoltas liberais de São Paulo e Minas Gerais; a seguir, uma nova responsabilidade: foi nomeado presidente e comandante militar do Rio Grande do Sul, para enfrentar e derrotar os revoltosos farroupilhas. Estes acusavam o poder central de aumentar impostos e não proteger a indústria de charque gaúcha contra a importação desse produto vindo do Rio da Prata.
A revolta Farroupilha foi naquele momento um grave desafio à construção e centralização do Estado monárquico. Tendo começado em 1835, já no ano seguinte os revoltosos proclamaram a República Rio-Grandense, sendo seguidos pelos catarinenses com sua República Juliana. A resistência dos rebeldes dificultava o sucesso total das forças imperiais, porém, quando Caxias assumiu o comando, as perspectivas de vitória dos rebelados eram praticamente nulas. Eles persistiam na luta para obter concessões do governo central, tais como anistia, benefícios financeiros e dispensa do serviço na Guarda Nacional. Essas demandas foram finalmente atendidas quando Caxias e o General farroupilha Canabarro selaram a paz em 1º de março de 1845.
Em reconhecimento aos seus serviços, Caxias ascendeu ao posto de marechal-de-campo, recebeu o título de conde e foi nomeado senador pelo Rio Grande do Sul em 1845. Essa posição, de caráter vitalício, foi designada por Pedro II a partir de uma lista que incluía os três candidatos mais votados na província. Sua atuação no Senado foi discretamente marcada, uma vez que seu tempo era majoritariamente dedicado a questões militares e governamentais, ocupou o cargo de ministro da Guerra por duas vezes e foi presidente do Conselho de Ministros em três ocasiões. Além disso, importa destacar que não tinha grande apreço pela atividade legislativa.
No âmbito internacional, Caxias participou ativamente das quatro guerras travadas pelo Império no Prata e liderou as forças brasileiras em três delas: contra Manuel Oribe no Uruguai em 1851; contra Juan Manuel de Rosas na Argentina em 1852, ano em que foi agraciado com o título de marquês; e na mais desafiadora delas, contra Solano Lopez no Paraguai, entre 1866 e janeiro de 1869.
Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), após mais de um ano de conflito, as tropas aliadas – argentinas, brasileiras e uruguaias – encontravam-se em um impasse, incapazes de avançar no território inimigo. Em setembro de 1866, sofreram uma derrota significativa em Curupaiti. Nesse contexto crítico, o presidente do Conselho de Ministros, o liberal Zacarias de Góes e Vasconcelos, solicitou a Caxias que assumisse o comando das forças brasileiras no Paraguai. Ao aceitar liderar um exército que enfrentava desorganização e desmoralização, Caxias colocou em risco não apenas uma carreira repleta de triunfos, mas também, aos 63 anos de idade, sua própria saúde, diante das adversidades impostas pelas duras condições do território onde a guerra era travada.
Durante sua atuação no Paraguai, Caxias revelou sua competência como comandante, apesar de enfrentar muitos desafios. Sua habilidade estratégica permitiu a destruição do poder militar inimigo, embora o desfecho da guerra tenha sido consolidado apenas com a morte de Solano Lopez em março de 1870. Em agosto de 1868, Caxias, juntamente com seus colegas do Partido Conservador, que haviam retomado o governo no Brasil, advogou pela cessação das hostilidades, porém, acatou a ordem de Pedro II para prosseguir com o conflito. Argumentava que a guerra não mais se justificava, uma vez que a honra brasileira já havia sido restaurada com as derrotas impostas a Solano Lopez. Além disso, o Paraguai não representava mais uma ameaça militar significativa, e a continuidade do conflito acarretaria em mais sacrifícios financeiros e humanos para o Império. Essa proposta de encerramento do conflito refletia o sentimento predominante no Brasil, onde a guerra estava se tornando cada vez mais impopular.
Enfrentando grandes sacrifícios pessoais e superando suas próprias angústias e incertezas, Caxias conseguiu desmantelar o poder militar paraguaio. Seu comando, e também sua retirada do Paraguai em janeiro de 1869, por ordens médicas após ter sofrido um desmaio, foram alvos de diversas críticas naquele momento, principalmente por opositores com interesses políticos. Ao retornar ao Rio de Janeiro, sua chegada foi discreta, sem celebrações populares ou qualquer cerimônia oficial, no entanto, logo em seguida, foi agraciado com o título de duque. As adversidades enfrentadas no campo de batalha, juntamente com essas críticas, tiveram um profundo impacto em Caxias, deixando-o amargurado. Em uma carta escrita em agosto de 1869 ao general Osório, seu camarada no Paraguai, ele expressou sua desilusão: “Quando era moço, meu amigo, não sabia explicar a razão por que todos os velhos eram egoístas, mas, agora que sou velho, é que vejo que eles são assim pelas decepções e ingratidões que sofrem, no decurso de sua longa vida. Ao menos a mim isso acontece (…).” Tal amargura pode ter influenciado sua decisão de recusar honras militares em seu funeral e de pedir para que seu caixão fosse carregado por seis simples soldados, um desejo que foi respeitado.
A associação de Caxias com o Exército, estabelecida desde os anos 1920, gerou uma série de interpretações emocionais sobre sua figura histórica. Nas décadas de 1970 e 1980, o revisionismo da Guerra do Paraguai, ao erroneamente culpar o imperialismo inglês pelo conflito, retratou o duque quase como um genocida. Muitos intelectuais da oposição aderiram a essa narrativa por motivos ideológicos, visando minar a legitimidade do regime militar ao comprometer a imagem de Caxias. No entanto, os tempos mudaram. Com a redemocratização do Brasil e o término da Guerra Fria, tornaram-se possíveis análises mais imparciais do papel histórico de Caxias. Com novas pesquisas sobre sua vida e obra, parafraseando Escragnolle de Taunay, certamente “há muito que narrar”, porém, muito mais que narrativas.
Por enquanto, ficamos com seu exemplo de militar que cumpriu seu dever, acima de tudo, e que se manteve fiel à pátria e a seus mais caros valores. De Caxias saíram muitos exemplos. Se vivo fosse, sua farda seria menos pomposa, diferente da que envergava noutros tempos, mas seu brio e seu valor seriam os mesmos, inspirando as tropas a servir ao Brasil e aos brasileiros.
Quanto ao município de Duque de Caxias, sua terra natal, antes tão afastado do centro das decisões no Rio de Janeiro, em razão do crescimento urbano agora faz parte de sua região metropolitana. Não é mais um município agrícola, mas tem no refino de petróleo seu carro chefe. Suas terras não produzem mais aqueles itens que mantinham sua prosperidade nem outros que garantiam sua subsistência. De Caxias, não sai mais café, laranjas, farinha de mandioca, nem mesmo melancias, estas últimas são compradas, e vendidas.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. III N.º 42 - ISSN 2764-3867
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