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As picanhas e os píncaros da picaretagem

Atualizado: 10 de fev.


As picanhas e os píncaros da picaretagem

O termo "pícaro" e suas variações, como "picareta" e "picaretagem", têm raízes históricas e culturais, particularmente ligadas à literatura espanhola do século XVI, mais especificamente aos romances picarescos. Esses termos evoluíram ao longo do tempo, mas todos compartilham um vínculo comum com a figura do indivíduo astuto, muitas vezes marginal, que usa de artifícios e dissimulação para alcançar seus objetivos.

A origem do termo "pícaro" remonta à figura de indivíduos que, durante a Idade Média e o Renascimento, eram vistos como aventureiros, muitas vezes soldados esfarrapados e famintos, oriundos da Picardia, uma região do norte da França. Embora a conexão com a Picardia seja uma teoria e não uma certeza histórica, o termo passou a ser associado a pessoas em situações precárias, que vagavam pela sociedade sem uma posição definida, mas que possuíam habilidades de sobrevivência, muitas vezes baseadas na esperteza e no engano.

Nos romances picarescos, como Lazarillo de Tormes (1554), o "pícaro" passa a ser caracterizado como uma figura de classe social inferior, frequentemente descrita como servente, ajudante de cozinha ou trabalhador de baixo escalão, que se utiliza de artifícios, dissimulação e malícia para alcançar seus objetivos. O "pícaro" é um personagem que, apesar de sua condição precária, exibe uma sagacidade e uma falta de escrúpulos que o tornam capaz de manipular e enganar os outros para garantir sua sobrevivência, frequentemente utilizando de mentiras e de estratégias ardilosas.

O termo "picareta", derivado de "pícaro", começou a ser usado para se referir a pessoas que agem de maneira desonesta, enganosa e trapaceira, associando-se assim à prática de "picaretagem", que descreve a atividade de enganar, fraudar ou tirar proveito de situações por meio de artifícios. Hoje, "picareta" e "picaretagem" são termos populares para descrever ações fraudulentas ou enganosas em diversos contextos sociais, especialmente em relações comerciais, políticas e pessoais. Golpes como as famosas pirâmides financeiras, a venda de pontos turísticos ou até mesmo a promessa de picanha, trazem à tona a característica mais básica dos picaretas e seus golpes: se aproveitam da boa fé ou da ambição dos incautos para alcançarem seus objetivos. Popularmente é conhecida uma expressão bastante jocosa que diz que “todos os dias um malandro e um otário saem às ruas, quando se encontram dá negócio”. Algumas vezes nem precisam sair às ruas.

Agora que já sabemos da origem das palavras, vamos pinçar quatro histórias de grandes picaretagens históricas. Apenas quatro, visto que o volume de casos possivelmente lotaria uma biblioteca e certamente não queremos cansar os leitores.

Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni, cuja obra dispensa maiores apresentações, foi, em seus primeiros anos, um artista iniciante e ainda desconhecido. Em 1496, com o objetivo de alavancar sua carreira e ganhar visibilidade, criou uma escultura de Cupido dormindo. A representação de Cupido não era algo particularmente original, sendo um tema comum entre os artistas da época, e ainda mais irrelevante vindo de um desconhecido. Por isso, essa obra teria pouco valor no mercado de arte.

Para aumentar suas chances de venda, Michelangelo recorreu a um artifício: tratou a escultura com terra ácida para fazê-la parecer mais antiga. Com isso, conseguiu vendê-la a um negociante chamado Baldassare del Milanese, que, por sua vez, a revendeu ao Cardeal Riario de San Giorgio. No entanto, o cardeal logo descobriu a fraude e exigiu o reembolso. Quando Michelangelo pediu a devolução da escultura de Baldassare, este se recusou, afirmando que preferiria destruí-la a devolvê-la.

A relevância dessa história, contudo, não está apenas na fraude em si, mas no fato de que a escultura de Cupido foi responsável por atrair a atenção para os talentos de Michelangelo como escultor pela primeira vez, marcando um ponto de virada em sua carreira.

Em 1920, Charles Ponzi, um ítalo-americano conquistou uma grande quantidade de investidores ao prometer lucros de 50% em apenas 45 dias. Seu esquema envolvia a compra de cupons postais de outros países, que eram então trocados por selos nos Estados Unidos a preços mais altos. Contudo, as despesas e o tempo necessário para a conversão das moedas comprometiam qualquer possibilidade de lucro real. Mesmo assim, a propaganda de um cliente a outro alimentava a demanda e, por um tempo, Ponzi conseguiu pagar os investidores mais antigos com o dinheiro dos novos participantes – sempre mantendo para si uma parte substancial dos recursos.

Quando o golpe desmoronou, ficou claro que, para manter as promessas de rentabilidade, seriam necessários 160 milhões de cupons postais. No entanto, no mercado só existiam 27.000 unidades disponíveis. Após ser condenado e cumprir pena, Ponzi se mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu seus últimos anos em extrema pobreza, falecendo em 1949. Seu nome ficou eternamente ligado ao famoso "esquema de Ponzi", que se tornaria um dos golpes mais conhecidos no mundo.

Um dos maiores esquemas de pirâmide financeira do Brasil envolveu as Fazendas Reunidas Boi Gordo, que atraiu cerca de 30.000 investidores e resultou em perdas estimadas em 3,9 bilhões de reais. A proposta era tentadora: lucros de 42% em um ano e meio, levando muitos a investirem suas economias. A empresa, fundada em 1988, iniciou suas operações no mercado, mas foi nos anos 90 que passou a comercializar contratos de investimento coletivo (CICs), criando uma fachada de atividade agrícola focada na engorda de bois e criação de bezerros. No entanto, a verdadeira base do esquema não estava na criação de gado, mas no recrutamento contínuo de novos investidores, que financiavam os pagamentos prometidos aos antigos.

Durante uma década, a Boi Gordo cresceu, e até tentou abrir seu capital para regularizar suas operações, algo que não evitou o colapso do modelo de negócios. A empresa também apostou na publicidade, com anúncios estrelados pelo ator Antônio Fagundes durante a exibição da novela Rei do Gado, o que ajudou a atrair mais participantes. Contudo, em 2001, a Boi Gordo começou a enfrentar sérios problemas financeiros e não tinha mais recursos para honrar os resgates solicitados pelos investidores. Em 2004, foi decretada a falência da empresa, mas o processo judicial em torno do caso ainda está em andamento, com esforços sendo feitos para tentar recuperar ativos e indenizar os credores.

Em relação à responsabilidade dos envolvidos, o processo criminal contra o fundador Paulo Roberto de Andrade foi encerrado em 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), embora ele tenha sido multado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2003 em mais de 20 milhões de reais e proibido de atuar como administrador de empresas abertas por 20 anos. A falência e as tentativas de recuperação das perdas dos investidores expuseram a fragilidade do sistema, caracterizando-o como um típico esquema de pirâmide, no qual a entrada de novos participantes era essencial para sustentar os pagamentos aos mais antigos.

Bem, são casos realmente impactantes. O primeiro, porque quem suspeitaria que Michelangelo faria uma ‘traquinagem’ como a de 1496? O segundo, porque Charles Ponzi popularizou e emprestou seu nome a um dos golpes mais famosos e ainda praticados atualmente: a pirâmide financeira, que se aproveita da ambição que muitos guardam em si. O terceiro, porque trouxe o esquema da pirâmide financeira à televisão, invadindo os lares brasileiros e demonstrando que, desde famosos até anônimos, todos podem ser vítimas da própria ambição. Mas, já que falamos de bois, vamos ao quarto e último estratagema.

O então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) fez uma declaração sobre os eleitores voltarem a comer picanha. A declaração ocorreu em 6 de agosto de 2002, durante um evento de campanha em São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo. Na ocasião, Lula estava se dirigindo aos seus apoiadores e fez a seguinte afirmação, que se tornou famosa: Nós vamos voltar a reunir a família no domingo e nós vamos fazer um churrasquinho e nós vamos comer uma fatia de picanha com uma gordurinha passada na farinha e tomar uma p* de uma cerveja gelada. Aí, bicho, o povo entra em delírio porque é isso que o povo quer”.

A promessa aparentemente alavancou votos para o candidato. Obviamente, não foi apenas aquela promessa rica em proteína e gordura saturada que fez de Lula o 39º presidente do Brasil, mas um conjunto de fatores que não arriscaremos explicar neste artigo. O fato é que aquela promessa despertou a ambição e o apetite de muitos, que, mesmo não possuindo os meios para comprar por si a tão desejada picanha, viram a possibilidade de se beneficiarem. Um gatilho mental que sequestrou a pouca racionalidade de muitos, dando vez aos impulsos mais primitivos.

Oferecer vantagem imerecida ou excessiva, despertar a ambição e o desejo sem necessidade de contrapartidas, prometer o que não se pode garantir. Todos são elementos que podemos encontrar em muitos golpes e estelionatos, até mesmo os eleitorais. Assim como em Oséias 4:6, o povo continua perecendo por falta de conhecimento. As classes populares ainda votam com o estômago, ainda são dirigidas por instintos e não por sentimentos nobres. Se a mentalidade não mudar nem mesmo pela via do sofrimento, só nos restará abandonar a vaidade e admitir que sempre estivemos, estamos e estaremos dependentes da misericórdia de Deus, pois nem mesmo pedir nós sabemos.

Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em vossos deleites. Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.” Tiago 4:3."


Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 50 edição de janeiro de 2025 – ISSN 2764-3867



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