O Estado democrático tropical brasileiro
- Mauricio Motta
- há 1 dia
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A democracia, na Grécia antiga (especialmente em Atenas), era um regime de governo direto, no qual os cidadãos (homens livres e nascidos em Atenas) participavam ativamente das decisões políticas nas assembleias. Já a partir da Revolução Francesa (1789), a democracia passou a ser compreendida como um sistema representativo, baseado na soberania popular, nos direitos individuais e na divisão dos poderes.
Em ambos os modelos havia mecanismos de controle estatal. Em Atenas, destacavam-se o ostracismo, onde o cidadão que acumulava poder excessivo podia ser banido por 10 anos por decisão da assembleia; a rotatividade de cargos, estratégia em que muitas funções políticas eram sorteadas entre os cidadãos, dificultando a formação de elites permanentes; a prestação de contas, momento em que magistrados e líderes podiam ser julgados após o mandato; e a isonomia, que é o princípio de igualdade perante a lei. Todas eram estratégias utilizadas como formas de evitar a concentração de poder. Na democracia moderna, os controles são mais estruturados e incluem a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), o respeito à Constituição, a garantia dos direitos civis e o Estado de Direito, que impõe limites legais ao poder estatal e protege os cidadãos.
Queremos convidar o leitor a analisar que resultados obtivemos no Brasil a partir do que poderíamos chamar de “democracia tropical”, mais diretamente ligada ao modelo revolucionário francês.
A história do Brasil pode ser lida como uma sucessão de mecanismos de controle, onde diferentes atores, do poder formal ao informal, modelaram a sociedade em função de interesses próprios. Desde a colônia, passando pelo Império, pelas oligarquias e ditaduras, até os tempos contemporâneos, o país experimentou formas diversas de governança, sempre com a tensão entre o controle centralizado e as forças paralelas que operam à margem da lei.
No período colonial, o território brasileiro era uma extensão de Portugal, administrado por meio de capitanias hereditárias e regulado por leis mercantis como o Pacto Colonial. O poder central ditava regras econômicas e jurídicas, e a sociedade local era organizada para extrair riquezas — primeiro, madeira e pau-brasil, depois açúcar e ouro. Todas essas riquezas aplicadas e consumidas majoritariamente aqui no Brasil. Não devemos esquecer que o que era levado a Portugal era apenas a quinta parte do que se explorava, o famoso "quinto", correspondente a apenas 20% do total. Que saudades de um tempo que não vivemos!
A escravidão, sobretudo africana, era o motor dessa economia. O termo “escravo” refletia a condição legal e social de milhões de pessoas, e não havia qualquer disfarce semântico: a palavra descrevia a realidade crua do sistema. A escravidão não era apenas trabalho forçado; era um instrumento de controle social e status econômico, cuja lógica sustentava toda a estrutura colonial.
Com a independência em 1822, o Brasil conquistou autonomia política, mas manteve a centralização do poder e a hegemonia das elites agrárias. A Constituição de 1824 criou um Estado formal, mas não alterou profundamente a vida da maioria da população.
A abolição da escravidão, em 1888, marcou uma ruptura simbólica, mas o sistema social permaneceu. Muitos libertos, com pouco ou nenhum acesso a recursos, acabaram reproduzindo relações de poder semelhantes, e a economia continuou centrada nas grandes propriedades. A mudança de nomenclatura, como o abandono do termo “escravo” para abordagens acadêmicas mais recentes e anacrônicas (“escravizado”), só surgiu séculos depois, como esforço de interpretação crítica, sem alterar o que de fato ocorrera.
A Proclamação da República em 1889 não significou, de fato, a democratização do poder. O período oligárquico do café com leite (final do século XIX e início do XX) manteve a hegemonia das elites estaduais e regionais. O coronelismo consolidou o controle local: o poder formal era mediado por relações de clientelismo, lealdade pessoal e influência econômica. A participação popular era restrita, e o Estado continuava distante do cotidiano da maioria.
O século XX trouxe rupturas marcantes. O Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e, depois, a ditadura militar (1964-1985) concentraram o poder central sob a justificativa da “ordem”. Censura, vigilância e repressão limitaram a liberdade individual e moldaram comportamentos, com base em uma narrativa oficial de progresso e segurança. A participação cidadã continuava restrita, mas o controle agora incluía também o plano simbólico: censura literária, educação moral e controle da mídia moldavam o imaginário coletivo, seja a partir do Palácio do Catete ou dos quartéis.
No Brasil contemporâneo, o Estado Nacional formalmente democrático convive com a ausência de autoridade efetiva em diversas áreas. Em muitas favelas e territórios periféricos, o poder real não está nas mãos do governo, mas de grupos paralelos, como o tráfico e as milícias. Essas áreas funcionam como microestados: fronteiras claras, entrada e saída rigidamente controladas, líderes que cobram tributos, regulam serviços e aplicam “justiça” interna.
O controle não é apenas material, mas simbólico. Nos anos 1990, a substituição da palavra “favela” por “comunidade”, incentivada por cientistas sociais, promovida por ONGs, utilizada em políticas públicas e por setores da mídia, numa tentativa de suavizar o estigma social, não passou de um eufemismo, de manipulação estética da realidade dura das áreas mais carentes. Já a expressão “condomínio”, mais comum no Rio de Janeiro, surgiu organicamente entre os próprios moradores, como ironia tipicamente carioca à estrutura de poder interna nas favelas. O síndico é o chefe do "poder paralelo", os homens armados são responsáveis pela segurança, e taxas obrigatórias financiam serviços básicos monopolizados, como gás, internet e transporte.
Essa mudança de linguagem não altera a realidade, mas modela percepções, reforçando a ideia de progresso enquanto a ausência de protagonismo real persiste. Controlar palavras é uma forma de controlar narrativas, e controlar narrativas é uma forma de influenciar comportamentos.
Guardadas as devidas proporções, a analogia que salta aos olhos nesses territórios tem forte paralelo com o feudalismo medieval. Assim como os senhores feudais detinham autoridade sobre terras e pessoas, garantindo proteção e cobrando tributos, os líderes locais impõem regras, protegem e exploram recursos. O Estado central, quando presente, é simbólico e distante; quem exerce o poder real tende a ser o ator local, armado e organizado.
Essa dinâmica revela um Brasil fragmentado, em que o Estado formal e o poder paralelo coexistem, e quem sabe até se unam formando um ser policéfalo e "multitentacular". Quem sabe?
A formação do Estado nacional brasileiro, portanto, não é apenas um processo jurídico ou institucional: é a história de troca de senhores, de centralizações e dispersões, de controle territorial e simbólico, que ainda hoje define quem governa quem.
Temos um povo que vota, mas não decide; que paga tributos, mas não colhe justiça. Temos representantes que muitas vezes parecem senhores distantes, blindados por palácios e favores. Vemos que muitos dos cidadãos não confiam no próprio governo, que as leis não são as mesmas para todos, e que, mesmo em tempos de democracia, há magistrados com mais poder que todo o povo reunido em nossa ágora contemporânea. Como podemos chamar de "democracia" a um regime em que o povo é lembrado só de tempos em tempos, quando há eleições, mas no restante, vive à margem, cercado por forças oficiais ou paralelas, ou esquecido por um Estado que é mais símbolo do que presença?
Ainda assim, percebemos algo que toca mesmo aos corações mais descrentes: nossas ruas se cobrem de tapetes humanos em verde e amarelo, nossas vozes se levantam, nossos jovens marcham. Ainda há esperança, há chama. Talvez isso seja a semente que, um dia, poderá florescer numa verdadeira democracia. Mas para isso, não basta a chama, é preciso que o povo se governe, para então governar a seus governantes eleitos.
Até quando lutaremos contra rótulos, nos dividindo em alas, facções, torcidas adversárias? Até quando estaremos distraídos pela forma, enquanto o conteúdo permanece? Até quando defenderemos governos, quando o que permanece e tem valor intrínseco é o Estado? Até quando seremos parte? Até quando seremos? Até quando?
Até!
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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 60 edição de Novembro de 2025 – ISSN 2764-3867




