Maquiagem e estética para o baile Educacional Brasileiro
- Mauricio Motta
- 18 de set.
- 6 min de leitura

Nos anos 1990, o Brasil enfrentou uma encruzilhada histórica que moldou seu futuro educacional. Em meio a esforços para estabilizar uma economia marcada por décadas de inflação galopante, o país buscava também se reposicionar no cenário global, demonstrando capacidade de modernizar suas estruturas sociais e institucionais. Nesse contexto, a educação emergiu como peça central nas negociações com organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que condicionavam financiamentos a reformas estruturais. A questão central, porém, permanece: até que ponto os acordos internacionais firmados para melhorar indicadores educacionais promoveram mudanças reais na qualidade do ensino? Ou será que, na ânsia por cumprir metas externas, o Brasil recorreu a soluções artificiais que maquiaram problemas estruturais sem resolvê-los? Na verdade, o leitor já deve imaginar a resposta a esta pergunta, mas vamos tentar entender como tudo se desenrolou até chegarmos onde estamos.
O sistema educacional brasileiro, antes mesmo das pressões externas dos anos 1990, já carregava um fardo de problemas históricos. A escola pública enfrentava taxas alarmantes de evasão, repetência em massa e desigualdades profundas no acesso à educação. O cenário era de exclusão sistêmica: milhões de crianças, especialmente em áreas rurais e periferias urbanas, não completavam o ensino fundamental, enquanto a repetência se tornava quase uma norma, perpetuando ciclos de fracasso escolar e desmotivação. Dados do IBGE da época mostram que, no início dos anos 1990, cerca de 20% dos alunos do ensino fundamental repetiam o ano, e a taxa de conclusão desse nível de ensino mal ultrapassava 50% em algumas regiões.
Nesse contexto, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), o Brasil intensificou sua parceria com o Banco Mundial, aceitando condicionalidades que vinculavam empréstimos à melhoria de indicadores de acesso e permanência escolar. A proposta era ambiciosa e, em teoria, promissora: universalizar a matrícula, reduzir a evasão e promover a democratização do ensino. Para isso, foram implementadas reformas estruturais, como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), criado em 1996, que direcionou recursos para o ensino básico, e a municipalização do ensino fundamental, que buscava descentralizar a gestão educacional e aproximá-la das realidades locais.
A meta de universalizar a educação, amplamente defendida nessas negociações, implicava não apenas ampliar o acesso, mas garantir permanência, conclusão, qualidade e equidade no sistema educacional. No entanto, o Brasil concentrou esforços em indicadores quantitativos, como matrículas e fluxo escolar, negligenciando elementos cruciais como a qualidade do aprendizado e a redução das desigualdades regionais e sociais. Dados do IBGE mostram que, no início dos anos 2000, o país alcançou taxas de matrícula próximas de 100% no ensino fundamental, um marco significativo. Contudo, avaliações como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) revelaram que cerca de 40% dos alunos do 5º ano apresentavam desempenho crítico em leitura em 2003. Além disso, disparidades persistiam: escolas em regiões pobres, como o Norte e o Nordeste, frequentemente operavam sem infraestrutura básica, como água potável ou saneamento, enquanto grupos vulneráveis, como indígenas e alunos com deficiência, enfrentavam barreiras adicionais, como a falta de materiais didáticos adaptados ou professores preparados. Esse descompasso evidencia que a universalização, em sua plenitude, exigia muito mais do que números favoráveis.
No entanto, a tradução desses objetivos em políticas públicas revelou fragilidades. Medidas como a introdução de ciclos de progressão continuada, adotada em estados como São Paulo a partir de 1998, e sistemas equivalentes, como a “progressão parcial” no Rio de Janeiro, acabaram por distorcer o propósito original das reformas. A lógica por trás dessas políticas era aparentemente simples, mas perigosa: se altas taxas de reprovação comprometiam os indicadores exigidos por organismos internacionais, bastava reduzir as barreiras para a aprovação, independentemente do aprendizado efetivo. Assim, nasceu a polêmica prática da “aprovação automática”, um termo que, embora nunca oficialmente adotado, capturava a essência de um sistema que priorizava o avanço formal dos alunos em detrimento da qualidade educacional.
Em São Paulo, a progressão continuada foi justificada como uma forma de combater a estigmatização da repetência e manter as crianças na escola. No Rio de Janeiro, a progressão parcial permitia que alunos avançassem mesmo sem dominar conteúdos essenciais, desde que cumprissem requisitos mínimos. Essas políticas, embora "bem-intencionadas", criaram um paradoxo: os indicadores de fluxo escolar melhoraram significativamente, com aumento nas taxas de matrícula e redução da evasão e da repetência. Dados do Ministério da Educação mostram que, entre 1995 e 2005, a taxa de aprovação no ensino fundamental subiu de cerca de 70% para quase 90% em algumas regiões. Contudo, avaliações internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), revelaram um quadro alarmante: os alunos brasileiros avançavam de série, mas apresentavam desempenho pífio em leitura, matemática e ciências, colocando o Brasil consistentemente entre os últimos colocados no ranking global.
Esse contraste expôs uma verdade incômoda: o Brasil havia transformado suas escolas em “fábricas de aprovação”, onde o progresso nos registros oficiais não correspondia ao domínio real dos conteúdos. A ênfase em metas quantitativas, como as exigidas pelo Banco Mundial, acabou incentivando soluções de curto prazo que negligenciavam questões estruturais, como a formação inadequada de professores, a infraestrutura precária das escolas e a ausência de políticas robustas de apoio ao aprendizado. Por exemplo, enquanto o Fundef trouxe avanços no financiamento, a distribuição desigual de recursos entre municípios perpetuou disparidades regionais, com escolas em áreas pobres frequentemente operando com orçamentos insuficientes para atender às necessidades básicas.
Além disso, a pressão por resultados rápidos levou a uma cultura de accountability que remete à transparência nos atos, nas metas, nos objetivos, nas entregas de resultados, na definição de responsabilidades e, claro, na prestação de contas. A essência do sistema estava baseada em números, mas carente de foco na qualidade pedagógica. Avaliações nacionais, como o SAEB, começaram a revelar que muitos alunos concluíam o ensino fundamental sem habilidades básicas de leitura e escrita. Esse cenário evidenciava que as reformas, embora bem-sucedidas em ampliar o acesso, falhavam em garantir aprendizado significativo.
As reformas educacionais dos anos 1990 e início dos 2000 foram impulsionadas por uma combinação de pressão internacional e aspirações legítimas de modernização. No entanto, o Brasil pagou um preço alto pela priorização de metas numéricas em detrimento da qualidade. Ao transformar escolas em máquinas de aprovação, o país esvaziou o sentido pedagógico do progresso escolar e formou uma geração de alunos que, embora registrados como bem-sucedidos nos índices oficiais, carecia de competências essenciais para a vida e o mercado de trabalho. Erro de cálculo ou premeditação? Os fins justificavam os meios? O resultado seria tão imprevisível que nossos burocratas não conseguiriam adivinhar? Certamente não, havia método e interesses personalistas envolvidos. O cálculo político se sobrepôs ao idealismo do magistério.
O legado desse período é ambíguo: por um lado, o Brasil alcançou avanços inegáveis na ampliação do acesso à educação, com taxas de matrícula no ensino fundamental próximas de 100% já no início dos anos 2000. Por outro, a incapacidade de alcançar a universalização plena da educação — que combina acesso, permanência, conclusão, qualidade e equidade — reflete o preço pago pela priorização de metas imediatistas. A fragilidade na qualidade do ensino, evidenciada por avaliações como o PISA, e as desigualdades persistentes, especialmente para grupos vulneráveis como indígenas e alunos de regiões pobres, mostram que o Brasil ainda está longe de um sistema educacional verdadeiramente inclusivo e transformador. É verdade que o Banco Mundial e outros organismos internacionais não prescreveram diretamente a “aprovação automática” ou políticas similares. Contudo, ao impor metas rígidas e prazos apertados, contribuíram para a adoção de atalhos que privilegiaram estatísticas em vez de transformações reais. Para além deste mecanicismo, os burocratas não consideraram o fator "corrupção endêmica", que assola nosso país.
Hoje, ao enfrentarmos os desafios do presente, fica evidente que educação de qualidade exige mais do que números bonitos. Superar esse legado demanda políticas que enfrentem as desigualdades estruturais, invistam na formação docente, modernizem currículos e priorizem o aprendizado efetivo, rompendo com a lógica de soluções de fachada que marcaram as últimas décadas. O Brasil aprendeu, a duras penas, que encher estatísticas não é sinônimo de educar. Cabe agora corrigir o rumo, com políticas que conciliem inclusão e excelência, para que a escola pública seja, de fato, um motor de transformação social.
Ao finalizar este artigo, é no mínimo um gesto de responsabilidade reconhecer que décadas de erros, incidentais ou propositais, não serão resolvidas apenas com o uso de uma caneta Bic ou de uma Montblanc. Antes de corrigir a educação, é fundamental curar a corrupção, iniciando um ciclo virtuoso em que a responsabilidade no trato da res publica e a seriedade na condução da educação das novas gerações se retroalimentarão. Só então teremos o Brasil do futuro — com um futuro sustentável — até lá, segue o baile.
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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 57 edição de Agosto de 2025 – ISSN 2764-3867
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