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O crucifixo nos tribunais

O caso brasileiro


O crucifixo nos tribunais

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a situação ocorrida no Brasil, onde foi proposta a retirada dos crucifixos das salas de julgamento dos Tribunais, sob a alegação de laicidade do Estado, especialmente ante o aparente conflito entre o Preâmbulo da Constituição Federal e o art. 19, I, da mesma.

Num momento em que uma série de questões com fundo eminentemente moral tem passado a ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário brasileiro (v.g., pesquisas com células-tronco embrionárias, aborto de fetos anencéfalos, casamento entre pessoas de mesmo sexo), a ONG “Brasil para todos” formulou pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça no sentido de proibir a presença de crucifixos nas salas de sessões ou espaços públicos do Judiciário.

Para compor a análise proposta analisa-se o conteúdo e significado do “bloco de constitucionalidade”; a força normativa do preâmbulo da Constituição, ante o disposto no art. 19, I, da mesma Carta; após aprecia-se a decisão do Conselho Nacional de Justiça, sendo apresentadas algumas considerações finais, como conclusão do trabalho.


O bloco de constitucionalidade

Conforme Favoreu, a expressão bloco de constitucionalidade é uma adaptação, no âmbito do direito constitucional, da expressão criada por Hariou – “bloco de legalidade” – para fazer referência à atuação do Conselho de Estado no controle dos atos administrativos, através da aplicação do conjunto de regras, para além daquelas positivadas, que se impunham à Administração, em virtude do princípio da legalidade. Portanto, a “legalidade” referida não se trata de mera conformidade com a lei, mas conformidade com esta, mais os princípios gerais de direito e mais uma série de normas. Assim, prossegue, o bloco de legalidade deveria ser, em verdade, chamado de “bloco de juridicidade” (FAVOREU, Louis; LLORENTE, Francisco Rubio. El bloque de la constitucionalidad, Civitas: Madrid, 1999, p. 19).

Embora a origem do conceito remonte ao início do século passado, sua importância e aplicação ganham estatura a partir do aumento da relevância e atuação do Conselho Constitucional, na França. As funções deste órgão não se resumem a garantir o respeito à Carta Constitucional, pois, também através de sua jurisprudência, alargou-se o critério de constitucionalidade, passando a ser o defensor dos direitos e liberdades fundamentais (mesmo em países onde a estrutura do controle de constitucionalidade difere da existente na França, o termo, bem como o seu conteúdo, vem sendo adotado e aplicado _ No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o significado de “bloco de constitucionalidade” na ADIn 595-ES (decisão publicada no DJU de 26.02.2002), por exemplo. Conforme LLORENTE, na Espanha, o Tribunal Constitucional, considerando que a expressão não tem um conteúdo preciso naquele país, tem utilizado as expressões “parâmetro de constitucionalidade” (v.g. STC 29/1986) ou “bloco normativo”(v.g. STC 29/1982) (LLORENTE, Francisco Rubio. La forma del poder (Estudios sobre la Constitución). 2ª ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1997.p. 64, nota 6).

O leading case que levou a esse alargamento de competência e legitimação, levando à definição do “bloco de constitucionalidade”, é uma decisão do Conselho Constitucional francês, de 16 de junho de 1971, a respeito de liberdade de associação onde, pela vez primeira, veio consagrado o valor jurídico-constitucional do Preâmbulo da Constituição. A origem da questão reside no fato de que, em maio de 1970, foi dissolvido um pequeno partido político de esquerda – La Gauche Prolétarienne -, com base em uma lei de 1936, que combatia a existência de grupos e milícias privadas. O fato tomou notoriedade, vindo um grupo de cidadãos célebres, entre eles Sartre e Simone de Beauvoir, a se manifestar contrariamente à dissolução referida, constituindo a associação Les Amis de la Cause du Peuple, para sustentar essa posição.

À época, a constituição de associações era regulamentada por legislação do início do século passado que continha a exigência de depósito de uma declaração sobre a organização e os propósitos, bem como cópia dos estatutos da associação, junto ao Presidente da Câmara de Paris, que deveria divulgar essas informações através da imprensa oficial. Entretanto, em atenção à ordem do Ministro do Interior, a publicação foi recusada, pois considerada mera reedição do partido extinto.

A Associação interpôs uma ação perante o Tribunal Administrativo de Paris, que, fundando sua decisão na jurisprudência do Conselho de Estado, deferiu o pedido, determinando a publicação, permitindo a constituição buscada. Quatro meses após, o Governo francês apresentou projeto de lei para alterar a Lei de Liberdade de Associação de 1901, dando poderes ao Presidente da Câmara para remeter ao Procurador da República a documentação relativa a pedidos de constituições de associações, quando suspeitasse de finalidade ilegal ou imoral ou se tratasse de tentativa de reconstituição de associação que já tivesse assim sido considerada. Ou seja, associações estariam submetidas a um controle prévio de modo a manter suas atividades em conformidade com a lei e os bons costumes. Ante essa proposição, questionou-se se esse controle “a priori” não violaria o direito de livre associação, pois embaraços a esta liberdade haviam sido criados. O Presidente do Senado, nos termos do art. 61, 2ª parte, da Constituição de 1958, enviou o projeto ao Conselho Constitucional para pronunciamento sobre a questão (“O art. 61 da Constituição francesa prevê que o Conselho Constitucional deve pronunciar-se sobre a conformidade do projeto de lei à Constituição no prazo máximo de 20 dias. Este prazo pode ainda ser restringido a 8 dias, quando o governo solicita regime de urgência.” (LOBATO, Anderson Cavalcante. Para uma nova compreensão do sistema misto de controle de constitucionalidade: a aceitação do controle preventivo. In Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. N. 6. Revista dos Tribunais: São Paulo. Janeiro/março de 1994. p. 40).

Ao apreciar o projeto, o Conselho invocou os “princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da república” para considerar constitucional a liberdade de associação, consagrando o Preâmbulo desta como parte integrante do “bloco de constitucionalidade” (Decisão 71-44 DC, de 16 de julho de 1971), alterando de forma radical a amplitude do controle de constitucionalidade (Importa lembrar que “o art. 62 da Constituição francesa afirma que uma disposição de lei declarada inconstitucional não pode ser promulgada e, em se tratando do regulamento das Assembleias não pode ser aplicada. E continua, ressaltando que, ’as decisões do Conselho Constitucional não são suscetíveis de nenhum recurso. Elas se impõem aos poderes públicos e a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais”. (LOBATO, idem, p. 43).

O conceito de “bloco de constitucionalidade”, assim, não está limitado ao Texto Constitucional, mas abrange todos os princípios deste derivados, enquanto em unidade com aquele, incluindo-se não apenas o preâmbulo, mas os princípios gerais derivados do próprio sistema e os princípios suprapositivos imanentes à própria ordem jurídica (Assim, por exemplo, a Constituição brasileira, ao estabelecer a forma republicana, traz consigo os princípios decorrentes desta). A evolução da jurisprudência do Conselho Constitucional francês demonstra a abrangência crescente da noção de “bloco de constitucionalidade”. Além da referida decisão de 1971, o Conselho utilizou a noção de “princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República” em decisões de 1976 - direito de ofensa -, de 1977 - liberdade individual, liberdade de ensino e liberdade de consciência -, entre outras, tendo, em 1976, empregado a expressão “princípios de valor constitucional” para designar as normas não inscritas nos textos constitucionais, mas integrantes do “bloco” (V. FAVOREU e LLORENTE, op. cit., ps. 21-22).

Ensina Favoreu que o conceito de bloc de constitucionnalité não se configura em simples autorização dada ao Conselho para que busque a regra a ser aplicada ao caso concreto, mas de integração de princípios e dispositivos à ordem constitucional. O “bloco de constitucionalidade”, embora não se desconheça tratar-se de um conceito em constante evolução, na França, contemporaneamente, é composto pelo Texto da Constituição de 1958 e o seu Preâmbulo, o qual remete à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e para o Preâmbulo da Constituição de 1946; o Preâmbulo da Constituição de 1946, que remete aos “princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República” e proclama os “princípios particularmente necessários ao nosso tempo” (O mesmo não ocorre na Espanha, onde, conforme LLORENTE: “Ni en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional ni en la obra de los pocos estudiosos que, hasta el presente, han dedicado alguna atención al tema, hay elementos que permitan determinar com exactitud cuál sea el contenico del “bloque” ni cuál el elemento o rasgo que lo constituye como tal, sin que, de outra parte, (excusado es decirlo), exista definición o referencia normativa alguna del bloque en cuestión.” (LLORENTE, Francisco Rubio. La forma del poder (Estudios sobre la Constitución). 2ª ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1997.p. 64)).

Como se vê, os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República ocupam posição de equivalência com os direitos e liberdades consagrados pela Declaração de 1789. Esses princípios, originalmente, foram consagrados por leis ordinárias e não constitucionais, inexistindo critérios formais que se prestem à sua identificação. Assim, ao Conselho Constitucional francês abre-se um espaço interpretativo (criativo) para a identificação e aplicação dos princípios.

Portanto, o “bloco de constitucionalidade” não se trata de simples alargamento de possibilidade interpretativa, mas, isto sim, a integração de princípios que orientam o próprio Ordenamento Jurídico, por suas próprias tradições (Conforme MAURICE HARIOU, o direito é anterior ao Estado, não uma criação deste, mas uma criação do poder, que, historicamente é anterior ao Estado, e as doutrinas que não contemplam os fenômenos anteriores ao próprio Estado como origem do direito, estão distantes de uma visão constitucional (in Précis de Droit Constitutionnel, Paris: Recueil Sirey, 1923, p. 11).

Os valores mais altos, do ponto de vista ético e moral, socialmente assim entendidos, são aqueles reconhecidos pela Constituição, que os alçará à condição de princípios que irão informar toda a legislação nacional, não podendo por esta serem contrariados ou desrespeitados (Conforme ROTHENBURG, os princípios são manifestação primeira dos valores constitucionais (ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Fabris, 1999, p. 65). Ou seja, evidencia-se o caráter axiológico da fundamentação dos princípios constitucionais, os quais, por sua vez, são as “traves-mestras”, para usar a expressão de Canotilho, do ordenamento jurídico-constitucional.

Nesta linha, não se pode olvidar que o termo “princípio” contém a noção de início, origem, base, bem como expressa o ponto de partida, o fundamento de um processo, de um sistema. Os princípios é que orientam e condicionam a interpretação das normas jurídicas, inclusive das normas constitucionais, apresentando-se como unificadores e harmonizadores do sistema constitucional, uma vez que se encontram em patamar axiológico superior.

Pode-se dizer que, ao lado do ordenamento jurídico propriamente dito, concebido como um sistema de normas legais, tem-se os princípios que dão suporte axiológico e conferem coerência interna e estrutura harmônica ao sistema. Os princípios têm conteúdo ético e a justiça por finalidade, possibilitando definir o próprio sistema jurídico“como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos” (V. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 60).

Nas palavras de Carmen Lúcia A. Rocha, “Os princípios constitucionais são os conteúdos intelectivos dos valores superiores adotados em dada sociedade política, materializados e formalizados juridicamente para produzir uma regulação política no estado. Aqueles valores superiores encarnam-se nos princípios que formam a própria essência do sistema constitucional, dotando-o, assim, para cumprimento de suas funções, de normatividade jurídica. A sua opção ético-social antecede a sua caracterização normativo- jurídica.” (Apud ROTHENBURG, op. cit., p. 17).


O preâmbulo da Constituição Brasileira

Na esteira do entendimento do conteúdo do “bloco de constitucionalidade”, em especial a inserção do Preâmbulo da Constituição francesa de 1958 neste, surge o questionamento sobre a possibilidade de que o mesmo ocorra em relação ao Preâmbulo da Carta brasileira de 1988 e, se existente, se deste emanam princípios constitucionais que devem orientar todo o ordenamento jurídico.

Por primeiro, cabe transcrever o texto do próprio Preâmbulo da Carta de 1988:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”

Da leitura do texto, de plano, é possível verificar que não há princípios expressos, mas vários implícitos podem ser identificados: hierarquia e supremacia das leis, democracia, igualdade, federalismo, legalidade, etc.

O princípio relativo à democracia se revela, a partir da instituição de um Estado democrático, pela afirmação da igualdade, do pluralismo, pela menção à República. Entretanto, também este princípio vem contemplado de forma expressa nos dispositivos do corpo da Constituição, no art. 1° e inc. V; art. 5°, caput; e art. 14, entre outros. Também se encontra no Preâmbulo o princípio da igualdade, o qual foi consagrado no texto constitucional, nos arts. 5°, caput, e 19, III.. Na mesma situação, tem-se o princípio do federalismo, inserido nos arts. 1°; 18; 34, II; 60, §4°, I; e 85, da Constituição de 1988. A legalidade, inserida no Preâmbulo, por igual, restou consagrada no art. 5°, caput, e inc. II, de nossa Carta Constitucional. Outros princípios, considerados implícitos no Preâmbulo da Carta de 1988 poderiam ser referidos, eventualmente, mas a apresentação levada a efeito é suficiente para alcançar sua finalidade, qual seja, que as referências existentes no Preâmbulo foram inseridas no corpo do texto constitucional.

Entretanto, há uma expressão inserida no Preâmbulo da Carta de 1988 que é plena de conteúdo axiológico e por essa razão deve ser apreciada: sob a proteção de Deus.

A primeira oposição que se poderia apresentar à aceitação dessa invocação como princípio constitucional é, exatamente, sua inserção tão-somente no Preâmbulo, sob o fundamento de que quando o legislador constituinte buscou consagrar os princípios constitucionais levou-os, também, ao texto propriamente dito. No entanto, essa objeção não logra êxito, uma vez que não se pode “admitir o preâmbulo como repositório de ilusões, gulag ou desterro de disposições não queridas mas estampadas apenas para fazer crer” (ROTHENBURG, op. cit., p. 75). Não fosse suficiente, o mesmo argumento ampara, “a contrario sensu”, a invocação da proteção de Deus, pois não tivesse relevância não estaria sequer no Preâmbulo.

Afastadas tais objeções de caráter formal, resta confrontar a “invocação” com o laicismo do Estado brasileiro e a liberdade de crença, constitucionalmente erigida.

Em primeiro lugar, é necessário perceber que o laicismo não se confunde com ateísmo. É nítida e inafastável a separação entre Estado e Igreja, o que ocorre, no Brasil, desde a Carta Constitucional de 1891 (Regia o artigo 5°, da Constituição de 1824: “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.”

A constituição de 1891, a seu turno, permitiu a todos o exercício público e livre de seu culto, associando-se para tanto e adquirindo bens, observado o direito comum (art. 72, § 3°), bem como passou a reconhecer somente o casamento civil (§4°), estabeleceu o caráter secular dos cemitérios (§5°), determinou o ensino leigo nos estabelecimentos públicos (§6°), estabelecendo, ainda, o §7º: “Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou dos Estados”).

O laicismo implica, é evidente, em separação, dissociação, entre o Estado e uma determinada religião; jamais representa uma declaração de descrença ou ateísmo. É garantia do direito fundamental à liberdade de crer e viver a própria crença, liberdade essa que é meio para a própria dignidade religiosa e moral da pessoa. (DI LORENZO, Wambert. Deus e o Direito. Em RUAH –Revista do Centro de Pastoral da PUCRS. Ano XIII, nº 36. Porto Alegre: PUCRS. Maio de 2004. ps. 8-9).

A Constituição de 1934, em seu artigo 105, caput, praticamente repete o §7°, da Carta de 1891, ressalvando, entretanto, no Parágrafo único, que a manutenção de relações diplomáticas com a Santa Sé não implicava violação daquele dispositivo constitucional. Na Constituição Federal de 1967, também aparece a invocação da proteção de Deus, no diminuto Preâmbulo daquela Carta, nestes termos: “O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte constituição”, sem a supressão da liberdade de crença e religião”.

A religiosidade do povo brasileiro é fato inconteste, sendo testemunhas deste as inúmeras “procissões”, “shows”, “concentrações”, etc., realizados amiúde em todo o território nacional. De outro lado, o valor da proteção de Deus é reconhecido até no ambiente político partidário, exemplo disso é a inserção de autoridades eclesiásticas em Conselhos Políticos Governamentais.

Admitida a possibilidade de que a invocação da proteção de Deus tem conteúdo axiológico, bem como sua integração no “bloco de constitucionalidade” brasileiro, resta perquirir qual a orientação nele contida.

Considerando que, como já se disse, a idéia de princípio está ligada à idéia de fundamento, e, ainda, que a fraternidade, a dignidade da pessoa humana, o respeito à vida, entre outros princípios constitucionais, indicam que o direito à vida transcende a mera existência física, que este abrange outros aspectos, a “proteção de Deus”, invocada no Preâmbulo, deve informar a aplicação e a interpretação do direito, considerando que a existência tem uma finalidade que transcende o mundo material, que não é um fim em si mesma, mas vai além do egoísmo, que não é mera contingência ou acaso, mas que ruma ao desenvolvimento e bem estar de toda a sociedade.

Essa aplicação, de outro lado, não viria em prejuízo da garantia de liberdade de crença ou filosofia, uma vez que não pode haver privação de direitos por este motivo (art. 5°, VIII, CF/88), devendo no caso específico ser respeitado o dispositivo expresso, dentro à orientação principiológica de construir uma sociedade fraterna e pluralista. O conteúdo do Preâmbulo serve à distinção entre poder social (povo) e poder político (Assembléia Nacional Constituinte), estabelecendo entre eles uma hierarquia e afirmando a origem do segundo no primeiro. (DI LORENZO, op.cit., p.9).

O Brasil, ao contrário de afirmações feitas por defensores da laicidade (Juiz Roberto A. Lorea: “A ostentação de um crucifixo no STJ é inconstitucional porque viola a separação entre o Estado e a Igreja, ferindo o direito de inviolabilidade da crença religiosa, que é assegurada a todos os brasileiros. A questão é aceitar que o Brasil é um país laico...” (Jornal Folha de São Paulo, 24.09.2005), não é um país laico, mas é um país majoritariamente católico apostólico romano, laico é o Estado, não o país, não a nação, não a sociedade brasileira.

A laicidade do Estado não se estende por lei a toda a sociedade. Separação entre Estado e Igreja quer dizer independência, mas não incomunicabilidade e isolamento. Levada ao extremo, referida independência exigiria a supressão de feriados tradicionais de cunho religioso, tais como Sexta–Feira da Paixão (Lei Federal 9.093, setembro de 1995, v .g.), Corpus Christi, Finados, entre outros.

Para chegar à uma correta interpretação do contido no art. 19, I, da Constituição Federal do Brasil (“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”), não se pode esquecer que, historicamente, há dois modelos de Estado laico: o dos Estados Unidos da América do Norte e o da França. Entre os países da América Latina estes modelos podem, claramente, ser identificados, o norte-americano no Brasil, e o francês no México.

O modelo francês busca afastar da vida pública qualquer influência religiosa (fechamento de conventos, perseguição a religiosos e proibição de manifestações públicas de fé), tendo gerado diversas e sangrentas perturbações na vida das nações que as adotaram. De outro lado, o modelo norte-americano, que o Brasil adotou, com a laicização do Estado a aprtir da Constituição de 1890, separa religião e Estado, porém, não desconhece as convicções religiosas povo – reconhece que o Estado laico, mas a Nação é religiosa. Entretanto, se a Nação é parte do Estado, este é permeado pela influência da religião (Lembre-s a inscrição nas cédulas d dólar americano, “In God we trust” e os juramentos em Tribunais norte- americanos, feitos sobre a Bíblia). A propósito, escreve, Tocqueville:

“A religião na América, não participa diretamente do governo da sociedade; mas é, contudo, a sua mais alta instituição política. Não sei se todos os americanos têm fé na sua religião, pois quem pode ler nos corações? Mas tenho por certo que o americanos consideram a religião indispensável à mantença das instituições republicanas.”(TOCQUEVILLE, Alexis de . Democracia na América. São Paulo: Edusp, 1977. p.225.).

Decorrência da conjugação do que consta do Preâmbulo, do art. 19, I, da Constituição brasileira, bem como tendo em vista o modelo de laicização do país, tem-se que o princípio da laicidade no Brasil não proíbe a manifestação pública da cultura e da tradição religiosa do povo brasileiro, não se trata de um país ateísta ou anti-religioso, embora não seja confessional. O direito positivo da país, conquanto não obrigue ninguém a ser católico, não pode, por outro lado, revogar a própria história, não se podendo negar o catolicismo como elemento de da nacionalidade é um fato social que não pode ser negado ou esquecido pelo sistema jurídico, em um país que surgiu à sombra da cruz e já foi denominado Terra de Santa Cruz.


A decisão do Conselho Nacional de Justiça

O Conselho Nacional de Justiça, do Brasil, julgou improcedente os pedidos de providências que buscavam a retirada dos crucifixos das salas e prédios do Poder Judiciário o País. A decisão entendeu que o uso dos crucifixos não fere o princípio de laicidade do Estado.

O relator do processo, Conselheiro Paulo Lobo, votou pela realização de consulta popular (via internet), pelo período de dois meses, objetivando aprofundar o debate sobre o tema, tendo o Conselheiro Oscar Argollo aberto divergência, apreciando o mérito da questão, votando pela permissão do uso do símbolo religioso, no que foi acompanhado pelos demais Conselheiros presentes, restando vencido o relator.

Para fundamentar seu voto, Argollo, inicia ressaltando que “ao invocar uma pretensa proteção para algo que é de todos e que não pertence a ninguém em particular é uma articulação falaciosa”. Argumenta que o interesse público em sua essência deve ser dirigido à defesa dos direito individuais predominantes, ainda que estes sejam tratados de forma coletiva.

Reconhece que a cultura e a tradição são fundamentos da evolução social e, inseridas em uma sociedade oferecem as cidadãos a exposição permanente de símbolos representativos, com os quais se convive pacificamente, v.g.: o crucifixo, a estátua, etc. São comportamentos individuais inseridos pela cultura no direito coletivo, mas somente porque a esse conjunto pertence, e porque tais interesses podem ser tratados coletivamente, mas não para serem entendidos como violadores de outros interesses ou direitos individuais, privados e de cunho religioso que a tradição da sociedade respeita e não contesta, pois não se sente agredida ou violada.

Entendeu não haver violação ao art. 19, I, da Constituição Federal, tampouco transformação do Estado em clerical, o fato de expor crucifixo em salas do Poder Judiciário, pois esse fato não ofende o interesse público primário (a sociedade), mas, ao contrário, preserva-o, garantindo interesses individuais culturalmente solidificados e amparados pela ordem constitucional, enraizados nas tradições da própria sociedade.

De outra parte, não há proibição para uso de símbolos religiosos em qualquer ambiente do Poder Judiciário, sendo da tradição do povo brasileiro a ostentação desse símbolo, sem que se observe repúdio da sociedade, o que a consagra como comportamento aceitável.

O costume é fonte e regra de direito, tem por fundamento de seu valor a tradição, não a autoridade do legislador, Costume é uso geral, repetido, permanente, notório, observado por todos, convictos de que corresponde a uma necessidade jurídica.

A exposição do crucifixo em salas do Poder Judiciário corresponde a uma necessidade jurídica, de acordo com as homenagens devidas à Justiça. Demonstra o respeito ao local, é um símbolo que homenageia princípios éticos.

Através de símbolos se busca torna visível uma idéia – é idéia em forma de imagem. Carlos Heitor Cony, autor profano e agnóstico opina que o crucifixo adverte os juízes, em linguagem dramática, que a justiça pode ser falível. O Cristo pregado na cruz ilustra “um dos maiores erros judiciários de todos os tempos” (Folha de São Paulo, 28.09.2005).

Prossegue Argollo, afirmando que o Estado laico tem a noção de liberdade de crença como um comportamento derivado da liberdade de consciência, patrimônio da liberdade interna do indivíduo. Cabe ao Estado defender o indivíduo da coação, mas esta, por igual, não tem direito de se imiscuir nos costumes e tradições moralmente reconhecidos pela sociedade, não se podendo ignorar a manifestação cultural da religião nas tradições brasileiras que, atualmente, não representa qualquer espécie de submissão ao poder clerical.

Finalmente, em resposta a alusões segundo as quais a presença dos crucifixos em dependências de órgãos públicos seria uma apropriação indevida de espaços públicos, por interesses privados, devido a regra de que o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe, mas a Administração Pública ó pode fazer o que a lei determina, faz ver que não há norma que determine ou vede a colocação do símbolo religioso. Prevalecendo, assim, o princípio fundamental do interesse público de garantir direitos individuais e ao mesmo tempo coletivos, não procedendo a retirada pleiteada no processo.


Considerações finais

À guisa de considerações finais, é possível estabelecer algumas conclusões:

A primeira diz respeito à existência de princípios e dispositivos que, embora não fazendo parte do corpo do texto do ordenamento constitucional, considerado em sentido estrito, têm valor constitucional e integram este ordenamento com o mesmo status que aqueles expressamente referidos na Constituição, dando, assim conteúdo ao “bloco constitucionalidade”.

Conclui-se, em seqüência, que o Preâmbulo da Constituição é parte desta, pois integra o “bloco de constitucionalidade”, sendo que, no caso francês, por remessa expressa, também integram o “bloc” o Preâmbulo da Carta de 1946 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, além de outros princípios que também são objeto de remessa. Sendo o “bloco de constitucionalidade” não uma simples autorização para alargamento de espaços para interpretação constitucional, mas parte da Constituição.

Outra conclusão que se evidencia é a de que, sendo os princípios constitucionais a materialização constitucional dos valores socialmente mais relevantes, sua fundamentação tem conteúdo axiológico, devendo este conteúdo ser considerado quando da aplicação dos princípios e da noção de “bloco de constitucionalidade”.

A invocação da proteção de Deus, inserida no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, é integrante do “bloco de constitucionalidade”, sem afrontar outros princípios constitucionais, tais como a laicidade do Estado brasileiro e a liberdade de crença e posição filosófica.

Também se conclui que o fato de que um Estado seja laico, não implica necessariamente em ser o País laico, sendo que a laicidade não se estende por lei a toda a sociedade.

No caso examinado, a presença de crucifixos em salas do Poder Judiciário não viola o art. 19, I, da Constituição Brasileira, uma vez que os símbolos expressam materialmente as ideias, em consonância com os costumes e a tradição social, e aqueles simbolizam a maior injustiça cometida em um julgamento, assim como invoca a proteção de Deus para a distribuição da justiça, o que está em acordo com o Preâmbulo da Constituição Federal.

Por fim, é preciso ter em mente que a noção de liberdade de crença é princípio do Estado laico, cabendo a este defender o indivíduo da coação, mas isto não lhe dá o direito de se imiscuir nos costumes e tradições moralmente reconhecidas pela sociedade, especialmente a manifestação cultural da religião nas tradições brasileira.


Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. I N.º 08 - ISSN 2764-3867


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