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Ludopatia

O surrealismo na banalização da Ludopatia

O surrealismo na banalização da Ludopatia

Salvador Dali foi um pintor espanhol nascido em 1904. Seu trabalho artístico se destacou no movimento conhecido como surrealismo. O surrealismo ou sobrerrealismo foi um movimento artístico e literário nascido em Paris na década de 1920 e tem base no marxismo.

O Manifesto Surrealista, escrito em 1924, impunha o chamado automatismo psíquico, “estado puro, mediante o qual se propunha transmitir verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio o funcionamento do pensamento; ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral”.

Um segundo manifesto foi escrito em 1930, e tratava mais diretamente aos acontecimentos procedidos depois da publicação do primeiro manifesto, e do esclarecimento da posição política e dos princípios surrealistas. A cumplicidade com os comunistas, e a desconfiança destes e a possível traição que pode ter acontecido por parte de membros que se diziam adeptos do surrealismo, são assuntos tratados nos textos.

Dentre as características deste estilo estão a combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente. Segundo os surrealistas, a arte deve libertar-se das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência cotidiana, procurando expressar o mundo do inconsciente e dos sonhos.

Observa-se o surrealismo, na prática, através das obras de Salvador Dali, que exibia uma combinação de imagens bizarras e fantasiosas. Uma de suas obras mais conhecidas chama-se Persistência da memória, feita em 1931. O artista expõe uma paisagem típica da Catalunha e uma oliveira seca, árvore muito presente na região. Há também a presença de relógios disformes e derretidos, assim como o corpo prostrado presente no chão.

Se Salvador Dali vivesse no Brasil atualmente, certamente produziria uma obra sobre nossa situação. Provavelmente, o nome do quadro seria “Surrealismo”. Sim, é muito possível que Dali denominasse uma obra que refletisse o Brasil utilizando o próprio nome do movimento. Porque, como sempre digo, “o Brasil é surreal!”

Mas, ao mesmo tempo, penso que até Dali teria extrema dificuldade em retratar a grande complexidade que existe em solo tupiniquim. Será que a pintura mostraria um mapa derretido? Ou fantasmas andando por Copacabana? Não sabemos. Porém, sem querer tomar o lugar do artista, tentarei dissecar o surrealismo que tomou conta do país nos últimos tempos.

Atualmente, temos dois “surtos coletivos” em alta no país: bebês reborn e BETS. Confesso ao leitor que foi extremamente difícil escolher um dos temas, porque tratar de ambos tornaria este artigo deveras longo. Então, tomei a decisão de analisar a problemática das casas de apostas.

Jogos de azar não são novidade. Sua provável origem seria do ano 2.070 a.C na China, durante a Dinastia Xia. Alguns historiadores apontam o uso de ossos de animais (dados primitivos) e sorteios com objetos rituais como primeiros indícios de apostas. Na Dinastia Shang (entre 1600–1046 a.C.) foram encontrados dados e objetos de jogos em escavações arqueológicas datadas desse período. Já na Dinastia Han (entre (206 a.C.–220 d.C.) é quando surgem os primeiros jogos semelhantes à loteria atual. Alguns estudiosos acreditam que os recursos arrecadados com esses jogos foram usados até para financiar obras públicas, como partes da Grande Muralha da China.

Já na Idade Média, que compreende o tempo a partir do século V até o século XV, A Igreja Católica considerava os jogos de azar pecaminosos, por estarem ligados à cobiça, engano e perda de tempo. Concílios eclesiásticos da época, como o e Elvira (c. 306 d.C.) condenaram o jogo: jogadores poderiam ser excluídos da comunhão ou receber penitências severas. Além disso, muitos reis ligados à Igreja Católica proibiram apostas oficialmente, especialmente entre soldados e nobres — embora a prática continuasse em festas e tavernas.

Apesar das proibições, os jogos de azar eram comuns entre camponeses, mercadores, soldados e até nobres, através dos dados, cartas rudimentares e jogos de tabuleiro com apostas em moedas ou bens pessoais. Documentos indicam que, durante as cruzadas, cavaleiros medievais apostavam em jogos antes de batalhas, às vezes jogando até suas armaduras ou cavalos.

Ainda na Idade Média, houve a tentativa de regularizar estes jogos. Cidades como Veneza, Florença e Paris começaram a criar leis locais para proibir jogos de azar em determinados lugares e horários. Além disso, aplicavam multas e também licenciavam casas de jogos em algumas situações (quando o Estado lucrava). Essas tentativas marcaram o início da transição entre a repressão moral e o controle institucional que daria mais tarde origem aos cassinos oficiais no período moderno.

Já naquela época, há registros (poucos, porém verdadeiros) de apostadores que perderam tudo em jogos de apostas e, em um ato de desespero, decidiram encerrar suas vidas. O suicídio era considerado um pecado gravíssimo pela Igreja e frequentemente não era registrado oficialmente. Contudo, subliminarmente, isso era registrado. Eis um exemplo:

E o jogador, tendo perdido até suas vestes e honra, lançou-se ao rio, pois não via mais salvação.”

Os relatos não citam nomes nem mostram datas exatas, mas servem como testemunhos morais de que o jogo levava ao colapso pessoal.

Algumas obras literárias da época do Renascimento, inclusive, relatam personagens que arruinaram suas vidas graças ao vício em apostas, como é de praxe que literaturas reflitam a percepção social de sua época.

O Renascimento (que compreendeu o período entre séculos XIV e XVI) foi um período em que a literatura começou a tratar de vícios humanos com mais liberdade e crítica social, incluindo o vício em jogos de azar e apostas. Uma das mais conhecidas é “Elogio da loucura”, de Erasmo de Roterdã. Na obra, a personificação da Loucura critica os vícios humanos, incluindo os jogos de azar, mostrando como as pessoas se enganam ao buscar prazer momentâneo, mesmo com risco de ruína. Uma das citações do livro é:“São aqueles que, sempre perdendo, continuam apostando, como se o próximo lance fosse redentor.”

Tratando sobre a legalização de apostas na Idade Moderna e na Idade Contemporânea, o período é marcado por diversos acontecimentos que resumo aqui.

Na Europa, casas de apostas e jogos começaram a ser tolerados por governos, desde que pudessem ser regulados e taxados. Há o registro do ano de 1638, em Veneza, Itália, do Ridotto, o primeiro cassino legal do mundo, criado pelo governo para controlar e arrecadar impostos com os jogos durante o Carnaval. Durante a colonização dos Estados Unidos, os jogos foram populares, mas enfrentaram repressão moral. Com o tempo, cidades como Nova Orleans, Chicago e San Francisco viram crescer o jogo clandestino — até que a regulamentação começou.

No século XX, houve o boom das apostas legalizadas. Em 1931, o estado americano de Nevada legaliza o jogo, e Las Vegas se torna a capital mundial dos cassinos. Na Europa, vários países (como França, Alemanha e Reino Unido) criaram sistemas estatais de loterias e legalizaram cassinos sob licenciamento. No Brasil, o jogo foi legalizado durante o governo Vargas, mas proibido em 1946, com exceção das loterias federais e corridas de cavalo.

Atualmente, o Brasil vive uma “febre” em relação a casas de apostas, popularmente conhecidas como BETS. Em inglês, "bet" significa "aposta" ou "apostar". É usada tanto como substantivo (uma aposta em si) quanto como verbo (fazer uma aposta). A problemática das apostas online em solo brasileiro é a propagação da Ludopatia.

Ludopatia é o nome clínico para o vício em jogos de azar. Trata-se de um transtorno psicológico caracterizado pela compulsão em apostar, mesmo diante de consequências negativas para a vida pessoal, familiar, profissional e financeira.

Segundo critérios clínicos (DSM-5 e CID-11), a ludopatia envolve comportamentos como a necessidade de apostar quantias crescentes, perda de controle sobre o impulso de jogar, prejuízo significativo na vida social, familiar ou profissional e endividamento, venda de bens ou até crimes para sustentar o vício.

A propagação das casas de apostas online é feita praticamente por grandes influenciadores, que assinam contratos milionários para divulgar estes jogos em redes sociais. Contudo, qual a origem desse valor? Das perdas dos apostadores!

A Revista Piauí publicou uma matéria onde trata do “cachê da desgraça alheia”, quando o influenciador contratado ganha por volta de 30% (às vezes, mais) de tudo o que seus seguidores perdem em apostas. A reportagem expôs os cachês de celebridades que viraram a porta de entrada para o que hoje é chamado por especialistas de “pandemia do vício”.

O que torna a situação mais problemática é que o público-alvo de tais influenciadores são os que compõem as classes C, D e E, iludidos com promessas de “ganho rápido”, renda extra” e coisas deste jaez. Há quem utilize a premissa do “joga quem quer”, “a população brasileira não está preparada para jogar”, “não tem dinheiro, não joga”, mas que não considera que o vício em jogos de azar são tão nocivos — talvez até mais — quanto em drogas.

Ah, mas viciados em apostas sempre existiram...”. Sim, e como acompanhamos neste artigo, os jogos de azar sempre fizeram vítimas. Se, em tempos remotos, onde para se apostar era necessário sair de casa e se reunir com outras pessoas, a Ludopatia era evidente, devemos ter o senso de entender que hoje, com o mundo na palma da mão através da internet, a situação piorou drasticamente.

Utilizar a premissa liberal de que “aposta quem quer”, sem a devida observação dos malefícios causados pelas apostas, é ignorar que são os mais pobres as maiores vítimas. Se a casa sempre ganha e o mais vulnerável é quem aposta, logo temos uma reação em cadeira infernal, com crescente número de endividados, viciados, depressivos e suicidas em potencial. Influenciador que recebe dinheiro de casa de apostas possui as mãos sujas de sangue.



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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 54 edição de Maio de 2025 – ISSN 2764-3867



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