A guerra dos enclaves
- Leandro Costa
- há 19 horas
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A Grécia antiga, conhecida por seus habitantes como Hellas, diferente daquele que vemos nos dias atuais, pois, naquele tempo, o que hoje conhecemos como Grécia era uma região composta por cidades-estados de forma que, os centros urbanos gozavam de soberania, pois os cidadãos livres, que participavam ativamente da política, não possuíam vínculos com quaisquer outras cidades, logo, havia uma total independência entre uma cidade-Estado e as outras.
Evidentemente, as terras próximas de uma determinada cidade-Estado estavam sujeitas à influência daquela e, por vezes, a ausência clara de fronteiras fazia com que duas das figuras soberanas disputassem o território que consideravam como seu. A existência clara entre fronteiras faz com que nações não precisem se digladiar em disputa por porções de terras, por outro lado, a definição das fronteiras pode ser questionada com base em inúmeros argumentos.
Se por um lado uma fronteira pode ter surgido com base em um determinado marco geográfico, como é o caso das fronteiras fluviais, destacando-se o Rio Danúbio, responsável por dividir diversos países do leste europeu e as fronteiras entre Brasil, Paraguai e Argentina, ao sul do continente americano. Por outro lado, há fronteiras que surgiram com base em tratados, sendo resultado de guerras ou não. Nenhuma fronteira é inquestionável, podendo uma nação reivindicar uma alteração sob os mais diversos argumentos.
Usualmente, para que um país alegue que a fronteira não deveria ser estabelecida em determinado ponto, seus líderes levantarão questões históricas ou a presença de uma população que se considera integrante do povo da nação que não detém a soberania em determinado território.
A Bolívia, eventualmente, reivindica seu acesso ao mar, ora perdido para o Chile em batalha, questionando o resultado do episódio, de maneira que, busca que o governo chileno reconsidera a anexação da região que ocorrera há mais de um século, todavia, não existem relatos recentes de que a Bolívia tenha ameaçado uma ação beligerante com o fim de reaver tal território.
A Venezuela, por sua vez, deixa evidente que está disposta a recorrer ao uso da força para mover a fronteira da Região do Essequibo, buscando invalidar o tratado que definiu ser da Guiana a maior parte da aludida região, de maneira que, a ditadura bolivariana pretende, mesmo se isso der início a uma guerra, se apossar de todo o território, o que inclui parte que pertence ao Brasil, para satisfazer a sanha do ditador, talvez como meio de concentrar os esforços da população em uma guerra vazia que visa, tão somente, o enriquecimento do déspota que ocupa o poder, a despeito dos males que o próprio governo narcossocialista impôs ao povo daquele país.
Uma outra reivindicação, está levada a cabo por ação beligerante, foi feita pela Rússia em relação à Criméia e, posteriormente, às regiões de Lugansk e Donbasse, em face da Ucrânia, cujo fundamento apontado pelo ditador russo era a proteção dos russos étnicos que habitavam a região, alegando que a Ucrânia, sofrendo grande influência do ocidente e contaminada por uma espécie de neonazismo, tomava medidas enérgicas contra grupos separatistas que pretendiam anexar tais territórios à grande potência vizinha, colocando em risco a integridade dos russos étnicos que ali viviam.
Embora Moscou patrocinasse ativamente os separatistas, por isso, após seu fracasso decidiu assumir que a intenta dos supostos guerrilheiros era, na verdade, uma ação da própria Rússia, o temor em relação da aproximação da Ucrânia com o ocidente restou evidente quando o país do leste europeu decidiu se candidatar ao posto de membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, o que impediria uma ação da Rússia contra a Ucrânia sem, em tese, sofrer a retaliação de outros membros da organização.
Uma reivindicação ainda mais acentuada, embora ainda não tenha resultado em uma ação militar declarada, é da ditadura chinesa em relação à Taiwan, na qual, o governo socialista de Pequim apenas instiga um possível ataque, provocando seu alvo para desgastar a confiança do povo taiwanês em seus líderes. A questão de Taiwan difere das demais reivindicações ora apresentadas por conta de um ponto central, a China não pretende anexar parte do território de Taiwan, desejando assumir o controle total da soberania da ilha, de forma que o Estado taiwanês deve ser extinto caso a gigante ditadura asiática concretize seu desejo.
A soberania permite que seu detentor, sendo o povo, uma ditadura ou qualquer outro regime de governo, exerça sobre aquele território o poder em caráter absoluto, estando adstrito às regras preestabelecidas em sua norma fundante, quando ela existir. Um Estado soberano, em regra todos o são, é capaz de se autogerir, criar suas normas e dirimir conflitos entre seus integrantes, podendo opor-se aos desmandos externos em seus domínios.
As fronteiras podem apresentar características interessantes, mas o caso dos enclaves é algo que pode nos levar a uma reflexão sobre a questão da soberania, posto que, embora existam países que não possuem um acesso a uma rota libre, ou seja, uma saída para o mar, na qual é preciso manter uma relação comercial ou militar sem anuência de outro Estado, como a já citada Bolívia, incapaz de manter uma rota, ainda que espacial, sem a concordância de seus vizinhos, os enclaves, em se tratando de Estados, são países em que o território é totalmente circundado por outro país, não podendo manter rotas terrestres ou aéreas sem que o seu único vizinho permita.
Os enclaves mais conhecidos são o Lesoto, inserido em meio ao território da África do Sul, o Vaticano e San Marino, enclaves envoltos pelo território italiano, de maneira que, tais Estados não podem se relacionar comercial ou militarmente com qualquer país que seja sem a aquiescência dos países que os circundam. Hipoteticamente, caso Lesoto e a África do Sul iniciassem um conflito por quaisquer motivos, salvo a interferência de terceiros, isolaria o enclave, impedindo que qualquer tipo de ajuda, seja militar ou humanitária, fosse enviada àquela pequena nação.
No cenário de guerra entre Lesoto e África do Sul, se o apoio dado por outras nações se resumisse ao que ocorre na Ucrânia, envio de dinheiro e armas, o Lesoto sequer poderia receber tais contribuições, não podendo garantir seu esforço de guerra. Seria, em tal hipótese, um cerco com base na estrutura existente anterior à guerra em si. O mesmo ocorreria com San Marino em se tratando de um conflito entre tal enclave e a Itália.
O Vaticano seja talvez uma rara exceção, uma vez que seu valor inquestionável à grande parte de cidadãos de outros países faria com que diversas nações fossem compelidas a intervir e impedir que a soberania daquele país fosse ameaçada. A própria Itália, dado o considerável número de italianos que professam a fé católica, teria dificuldades em promover uma invasão ao Vaticano.
Analisando pela ótica do Vaticano, que, como observado, quase não corre o risco de sofrer um ataque por parte do país que o circunda, nota-se que o senário se inverte, pois a Itália acaba por se tornar uma defesa do pequeno país, impedindo que uma nação estrangeira avançar sobre o Vaticano sem antes declarar guerra à Itália, tal regra também pode favorecer San Marino e o Lesoto, se estes mantiverem uma boa relação com aqueles que os cercam.
Não há como declarar guerra ao Lesoto sem que a África do Sul, ao menos, concorde com a invasão, caso contrário a nação circundante estará envolvida no confronto, servindo de barreira em favor do Lesoto, caso em que a África do Sul tornar-se-ia um obstáculo maior que as próprias defesa do país que se pretende atacar. No passado a África do Sul interviu no Lesoto para, segundo o Governo de Mandela, evitar um suposto golpe de estado, quando um dos partidos do pequeno enclave conquistou setenta e nova de oitenta cadeiras no parlamento, gerando o questionamento quanto a lisura do processo eleitoral.
Evidente que a África do Sul, governada por Nelson Mandela, não constatou grandes irregularidades no processo eleitoral do Lesoto quando partido denominado Congresso do Lesoto para a Democracia, ligado à Internacional Socialista, venceu as questionadas eleições por uma vantagem quase inimaginável. A Itália, no período da Segunda Grande Guerra, também interviu em San Marino para apoiar os fascistas, bombardeando o pequeno enclave, surgindo assim o Fascio Republicano de San Marino.
Seguindo os mesmos moldes de Mussolini, Mandela apoio seus pares ideológicos intervindo no enclave, o que prova a fragilidade e interdependência de uma nação cujo território está inserido e cercado por outro Estado. Ao que indica, a soberania de um enclave é algo frágil, quase que sujeita a aprovação daquela nação que cerca totalmente o país encravado.
Assumindo a ideia de soberania fragilizada, é inevitável se questionar se há de fato soberania, posto que, a autodeterminação independe da permissão de um ente maior, podendo aquele povo editar regras conforme sua vontade. Hipoteticamente, a soberania de San Marino que sequer tem uma força de defesa, contando apenas com forças de segurança e cerimoniais, cabendo a Itália garantir a proteção de seu território, ou até do Lesoto, que dispõe de um exército formal que está adstrito às funções de guarda real e policiamento, sendo, portanto, incapaz de se proteger de sua vizinha, podem ser questionadas. Mais uma vez, desconsideramos o Vaticano, por ser a sede da Igreja Católica e, por isso, ter a proteção dos católicos em todo o mundo, sem contar que, mesmo os ortodoxos e protestantes, naturalmente, repudiam a ideia de um ataque belicoso ao Vaticano.
A soberania permite que um ente, que pode ser representante do povo ou não, pois um ditador ou tirano podem exercê-la, possa dirimir conflitos, promover políticas e editar suas regas, podendo impô-las pelo uso da força. Um Estado soberano é capaz de impor um código de ética para o convívio e exercer a jurisdição, que é apontar a quem assiste razão em um conflito, além disso, ele se autogere, se organizando e distribuindo funções, o que não e uma prerrogativa única da soberania, mas encontra-se presente para que existam meios de legislar, julgar e governar.
Não há como negar que o crime organizado, assumindo sua face de guerrilha narcossocialista, apresenta características de Estados soberanos nas áreas sob sua influência, posto que, tais forças criam seus códigos de conduta e os impõem aos que ali vivem, contando até mesmo com julgamentos e aparato de repressão. Os senhores dos enclaves chamados favelas, são praticamente soberanos em seus territórios, ocorrendo, por vezes, intervenções do Estado que os circunda, mas sem grande repercussão, pois, são situações pontuais e cada vez mais restritas.
O Presidente salvadorenho Nayib Bukele, conhecido por suas ações drásticas contra o crime organizado em seu país, as chamadas maras, chegou a afirmar que um Estado que não combate com a máxima energia as organizações criminosas que atuam em seu território deveria ser considerado cúmplice, deixando evidente que a existência dos enclaves que são bolhas de soberania em meio à outra, só podem existir com a anuência daquele que deveria o soberano real sobre aquele território.
A narrativa de que o Estado não poderia agir com firmeza devido às violações de direitos humanos, critica que se aplica à administração de Bukele, não encontra fundamento, uma vez que, a existência de enclaves do crime em território de um país, permite que as organizações criminosas que dominam tais espaços exerçam sua soberania violando ininterruptamente os direitos humanos daqueles que estão sob o seu julgo, ainda que vivam ou circulem apenas pelos arredores, portanto, ao sobrepesar o direito do membro da organização criminosa e de suas vítimas, o Estado deveria proteger aqueles que, em nenhum momento, optaram por delinquir e violar o direito alheio.
Ao alegar que as forças de segurança não podem atuar com energia com o fim de evitar violações de direitos humanos, o Estado está relegando os cidadãos, em especial os afetados pelas ações dos criminosos, à soberania dos enclaves do crime, assumindo, segundo o Presidente Bukele, uma posição como cúmplice dos algozes de seu povo. O governante salvadorenho traz à superfície uma hipótese que pode ser aterrorizando, pois, se consideradas a áreas sob o controle das organizações criminosas, cartéis organizados, hierarquizados e com códigos de éticas claros, além de assumirem uma postura cultural, afirmando sua ideologia e influindo nas práticas comerciais e de entretenimento, podemos perceber que há um distanciamento entre os cidadãos que vivem no território circundante e os que habitam os enclaves do crime.
Assumindo tal premissa, os cidadãos que vivem nos enclaves do crime podem se considerar como integrantes de outro povo, por isso, a máxima de que o outrora chamado morador do asfalto não merecia a preocupação, sendo, na visão de conflito de classe, uma classe opressora que deve ser expropriada pelos agentes da revolução, ou seja, os senhores dos enclaves com soberania parcial ou tolerada.
Se, por um lado, o Estado soberano pode atuar contra as organizações criminosas que atuam em seu território, cercando-as e assumindo o controle das áreas sob suas influências, também é importante dizer que, ao deixar de investir contra as facções, mesmo que fundamentando na narrativa dos direitos humanos que só alcançam o lado dos membros do crime organizado, o Estado estaria servindo de escudo para que outras forças não pudessem atuar no sentido de reprimir as organizações criminosas.
Observando tal impasse, abraçando a teoria do Chefe de Estado de El Salvador, assim como a Itália serve de proteção para um possível ataque contra San Marino e o Vaticano, e a África do Sul teria o mesmo papel em se tratando do Lesoto, poder-se-ia imaginar que o Brasil desempenha a mesma função quando em se tratando das organizações narcossocialistas, como o Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e os grupos paramilitares denominados milícias, além de outras facções menores que, por ventura, assumam igual papel.
É evidente que a ideologia socialista abrigou em seu seio, tais facções, algo esperado uma vez que foi tal pensamento político que outrora deu vida ao que hoje são as guerrilhas narcossocialistas, portanto, não seria absurdo, após refletir a respeito da fala de Bukele, que Estados como o México são associados e protetores dos cartéis que lá habitam, confirmando a hipótese que as facções no Brasil são enclaves que gozam do reconhecimento parcial e da proteção indireta do Estado, algo que fica ainda mais sombrio se observadas as políticas de enfrentamento ao crime organizado por parte de políticos de viés marxista ou social-democratas, como o nada saudoso Leonel Brizola, a quem se atribui uma diretriz de recuo das forças de segurança e o “abandono” das áreas ocupadas pelo crime organizado.
Quando houve, ao menos em proposta, a ideia de enfrentamento mais enérgico em face do crime organizado, uma legenda socialista recorreu ao Poder Judiciário para impor limites à atuação policial apenas no Rio de Janeiro, criando uma espécie de regramento que protegia apenas as organizações criminosas que atuam naquele ente federativo, o que parece uma resposta à promessa de enfrentamento ao crime que pode ter sido um dos fatores que elegeu o chefe do governo fluminense no ano anterior.
Se as facções lutam pelo controle territorial e, uma vez assumindo-o, passam a impor seu código de conduta, explorar atividades mercantis, lícitas ou não, além de influenciarem diretamente na cultura, tais grupos arregimentam soldados entre os jovens locais e alimentam a narrativa de que as forças de segurança acabam por ceifar a vidas de uma juventude periférica que a própria guerrilha revolucionária levou para o fronte, romantizando a criminalidade e assediando com dinheiro e poder os incautos, dando aos que pretendem frear a atuação coercitiva dos agentes de segurança, elementos que justifiquem a interrupção total ou parcial do enfrentamento ao crime.
Os senhores dos enclaves, por sua vez, percebem que podem exercer o poder em seu território através da força e avançam sobre as áreas que circundam, expandindo suas atividades para localidades mais lucrativas, cientes de que devem desafiar o Estado de forma pontual, pois, para o seu próprio povo, os que vivem nos enclaves, precisam passar a imagem de entes soberanos, ao passo que buscam conquistar os enclaves que são controlados por outras facções, entretanto, para os que vivem fora de seus domínios, é preciso impor o medo sem que se coloquem como uma afronta real ao Estado.
Por fim, na mais perversa das hipóteses, ainda assumindo a premissa de Nayib Bukele, é preciso verificar se, assim como a harmonia existente entre San Marino e a Itália, não há uma relação de simbiose entre o Estado e os enclaves do crime, que proteger-se-iam mutuamente para que figuras estranhas não possam agir contra as organizações criminosas e tais facções, de alguma forma, concedam favores às autoridades ou ao regime como um todo, impedindo que o povo se levante contra seu verdadeiro algoz, um conluio entre o poder aparentemente legítimo e aquele que sequer apresenta verniz de legalidade.
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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 52 edição de Março de 2025 – ISSN 2764-3867
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