Aljubarrota e a dinastia de Avis brasileira
- Mauricio Motta
- 16 de jul.
- 4 min de leitura
Em 14 de agosto de 1385, os campos de Aljubarrota, em Portugal, tornaram-se palco de um dos confrontos mais emblemáticos da história ibérica. O exército português, liderado por D. João I e pelo Condestável Nuno Álvares Pereira, enfrentou forças castelhanas muito superiores em número, mas não em estratégia ou determinação. O que estava em jogo não era apenas uma coroa, mas a própria independência nacional.
A crise teve início com a morte de D. Fernando I, rei de Portugal, sem herdeiros homens. Sua única filha, D. Beatriz, era casada com o rei de Castela, o que levantava temores sobre a absorção de Portugal por uma potência estrangeira. Diante desse risco, setores da nobreza, do clero e do povo uniram-se em torno do Mestre de Avis, irmão bastardo do falecido rei, que assumiu a causa da independência nacional. Com apoio popular e a liderança militar de Nuno Álvares Pereira, travou-se a batalha decisiva.
A vitória portuguesa não foi fruto do acaso. O terreno foi escolhido com inteligência. As táticas, inspiradas em métodos ingleses, incluíram trincheiras e defesas improvisadas que anularam a superioridade numérica inimiga. Em poucas horas, Portugal assegurou sua autonomia política e inaugurou a dinastia de Avis. Foi uma vitória da astúcia sobre a força bruta, da legitimidade popular sobre pretensões formais.
A poeira dos campos de Aljubarrota ainda não havia baixado naquele 14 de agosto quando Portugal descobriu que havia feito mais do que vencer uma batalha – inventara um futuro. A vitória improvável de D. João I contra as forças castelhanas não foi obra do acaso, mas de uma conjugação rara: estratégia militar brilhante, liderança carismática e, sobretudo, um profundo instinto de sobrevivência nacional. Enquanto Nuno Álvares Pereira comandava as operações no campo, nas cortes e nas vilas portuguesas consolidava-se a compreensão de que algumas causas transcendem indivíduos – tornam-se questões de existência coletiva.
Séculos depois, sob o céu de Brasília, outra batalha pela legitimidade do poder se desenrola, desta vez nos autos processuais e nas redes sociais. A decisão do TSE que tornou Jair Bolsonaro inelegível em 2023 ecoa, em seus próprios termos, o dilema essencial de Aljubarrota: quem tem o direito de governar, e com que autoridade? Se em 1385 a ameaça vinha de um reino vizinho que buscava anexação, hoje parte significativa da sociedade brasileira enxerga no Judiciário uma força que, ainda que domesticamente, opera como poder externo ao jogo político tradicional – moldando resultados que deveriam ser decididos nas urnas.
A analogia, naturalmente, não é perfeita. Castela representava uma potência externa, enquanto o Judiciário brasileiro é instituição constitucional. Porém, como observou o historiador José Mattoso em "A Identidade Nacional", aquele sentimento de invasão de soberania que mobilizou os portugueses em Aljubarrota não dependia de fronteiras geográficas, mas da percepção de que forças alheias ao corpo político nacional determinariam seu destino. Essa mesma lógica emocional parece operar hoje em segmentos que veem nas decisões judiciais sobre casos eleitorais uma interferência indevida no espaço democrático.
O campo conservador brasileiro vive hoje um impasse sucessório que lembra, em certa medida, os dilemas da nobreza portuguesa após Aljubarrota: a vitória política foi conquistada em 2018, mas falta-lhe um herdeiro claro para conduzir o próximo capítulo, agora que seu maior ícone está desarmado no campo de batalha e não pode lutar.
Tarcísio de Freitas emerge como figura técnica com credenciais administrativas, mas seu perfil tecnocrático – ainda que eficaz no governo de São Paulo – não parece despertar o fervor ideológico necessário para mobilizar o núcleo duro da direita conservadora. Michelle Bolsonaro, por outro lado, carrega o sobrenome e o capital simbólico da família, mas sua trajetória até agora sugere mais uma "guardiã da chama" do que uma líder pronta para assumir o centro do palco político. Eduardo Bolsonaro, embora combativo e fiel ao legado paterno, enfrenta resistências que vão além das disputas partidárias – sua imagem permanece controversa até mesmo entre setores que compartilham de suas ideias.
Aqui reside a diferença fundamental entre Aljubarrota e Brasília. Portugal saiu da batalha com uma liderança clara e um projeto nacional – as navegações que logo transformariam um pequeno reino em império global. O Brasil contemporâneo, após sua crise sucessória, ainda não encontrou nem o líder, nem o projeto que possa agregar além do círculo de fiéis. A direita oscila entre o personalismo e a falta de alternativas; a esquerda, entre o teatro encenado da defesa das instituições e a tentação de usá-las como armas contra os adversários.
Talvez a verdadeira lição de Aljubarrota seja justamente esta: que crises de sucessão só se resolvem quando há, por trás das disputas pessoais, uma ideia maior de país capaz de justificar os sacrifícios.
A ideia que mobilizou a nova casa monárquica portuguesa em 1385, passava pelo fortalecimento econômico e pela segurança militar. O Tratado de Windsor, assinado em 9 de maio de 1386, fez parte daquela estratégia e selou um acordo de paz e aliança entre Portugal e Inglaterra, formalizado durante o reinado de D. João I e Ricardo II, respetivamente. Este tratado estabeleceu uma aliança duradoura entre os dois reinos, com cláusulas militares, políticas e comerciais, considerado a mais antiga aliança diplomática em vigor.
O Tratado de Windsor não foi apenas uma aliança econômico-militar – foi a semente de um novo posicionamento geopolítico. O Brasil, em seu labirinto institucional, ainda procura sua bússola equivalente, alternando-se entre 'players' com espectros ideológicos diametralmente opostos, tais como os Estados Unidos e a China.
No fim, a história nunca se repete, mas suas melodias soam estranhamente familiares. O que Aljubarrota nos ensina é que nações podem emergir fortalecidas de suas crises existenciais – desde que encontrem, no meio da batalha, não apenas inimigos para combater, mas futuros para construir. O Brasil do século XXI, entre processos judiciais e polarização, ainda procura seu momento fundador. Quando – e como – ele virá é uma pergunta que nem os melhores estrategistas de 1385 saberiam responder. Mas a lição portuguesa permanece: sem projeto, não há vitória que dure; sem legitimidade, não há poder que se sustente.
O resto, como talvez dissesse Nuno Álvares Pereira enquanto cavalgava pelos campos após a batalha, é com a história.
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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 55 edição de Junho de 2025 – ISSN 2764-3867























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