Em busca do coturno sujo
Certa vez, lembro-me de ouvir a seguinte expressão, “infelizmente, estão procurando um coturno sujo”, confesso que não entendi em um primeiro momento do que se tratava, mesmo por nunca ter usado um coturno. Mas após alguns questionamentos, descobri que tal vernáculo é usado quando alguém quer achar um defeito mesmo que não o encontre, algo como se um superior militar procurasse nos subordinados uma falha para poder puni-los, não achando nada de relevante, busca então uma falta insignificante, podendo assim saciar sua pretensão punitiva.
Recordo-me da fábula do lobo e o cordeiro, na qual o lobo alegava que o cordeiro, que bebia água de um córrego sujava o veio, prejudicando o predador de aplacar sua sede, entretanto, o herbívoro retrucou afirmando que o fluxo d’água corria na direção oposta e que o lobo tinha acesso à água antes do cordeiro, o que de nada adiantou, pois, tudo era uma desculpa para que o lobo justificasse abater o seu interlocutor, tendo em vista que o único objetivo era devorar a presa.
Não são raros os exemplos em que o julgador criar argumentos transversos para aplicar uma sanção aos seus desafetos, julgando não pelos fatos, mas pela pessoa que está em julgamento. Algo indubitavelmente perigoso.
O que pretendo trazer à reflexão, não são os intitulados “crimes imaginários”, cuja criação, no mesmo propósito, serve aos anseios daqueles que julgam, mas na busca por uma falta que possa justificar a punição. Creio que a criação de infrações para perseguir opositores está em um momento subsequente à busca do coturno sujo, uma vez que, achada uma justificativa para punição, não será necessário inventá-la.
Um bom exemplo de prática nociva que pretende buscar uma ação ilícita de um desafeto é a conhecida fishing expedition, tão combatida e utilizada pelas mais altas cortes, sendo a busca por elementos que possam indicar uma infração partindo de premissas vagas ou vazias, claramente, porque o alvo da “pescaria” é um desafeto daquele que conduz a investigação.
Não obstante, investigações de cunho amplo, sem parâmetros preestabelecidos, que se revistam de obscuridade e perdurem por um período indeterminado permitem ao condutor das investigações perseguir qualquer um que possa, ainda que sem lastro, ser enquadrado em qualquer infração, bem como, aos devassar a intimidade, poderá a autoridade investigadora obter informações que não se revestem de ilegalidade mas denotam questões de foro íntimo.
Cogitando como seria prazeroso a um inimigo conhecer da intimidade de alguém por meio da invasão de sua privacidade, pode-se perceber o perigo de ações movidas pela vontade injustificada de determinada autoridade.
No que diz respeito ao coturno sujo, é inegável que uma autoridade, seja ela qual for, deve se submeter a limites intransponíveis, evitando assim que o autoritarismo seja exacerbado e pessoas ou instituições desafiem todo um ordenamento jurídico em busca de poder.
Não sendo possível encontrar o coturno sujo, é provável que a autoridade, ávido por devorar sua vítima, apele para os crimes imaginários, sendo um recurso ainda mais torpe.
Em tempos difíceis em que passamos, é impossível não se assustar com argumentos de que a censura não deve ser permitida, mas que uma pequena exceção à regra em nome de um processo eleitoral justo pode ser tolerada, bem como, a imprensa tenha que medir o que é dito no corpo de uma entrevista, para que não seja responsável por acusações que o entrevistado venha a fazer.
E pensar que o jornalismo, há pouco, defendia a responsabilização das plataformas pelo conteúdo que, embora não produzissem, veiculassem. Agora, parece que o ensandecido comandante, sendo superior, ou talvez supremo, decidiu que nenhum coturno está a salvo de sua revista à tropa.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 36
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