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Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil

Neste ano de 2022 comemoramos o bicentenário da Independência do Brasil, ou seja, no dia Sete de Setembro celebraremos os duzentos anos do famoso ‘grito do Ipiranga’, “Independência ou Morte!”.


Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil

A Revista Conhecimento & Cidadania preparou para você leitor, três textos introdutórios imediatamente anteriores a esta edição (José Bonifácio, O Patriarca, Leopoldina, Um Coração de mulher e Pedro de Alcântara, A impetuosidade liberalizante), de caráter biográfico e pretende oferecer agora uma visão ampliada do cenário dentro e fora do Brasil, que acompanhou o processo de nossa Independência, processo que se estendeu de 1821 a 1825.

Iniciaremos esclarecendo que o Sete de Setembro é atualmente a nossa data oficial, porém já foi comemorada em outra data, ou seja, o dia doze de outubro que era o dia do nascimento de D. Pedro I e foi também o dia de sua aclamação como imperador do Brasil. Para alguns estudiosos do tema, o dia vinte e nove de agosto de 1825 seria a data mais correta para a celebração, visto que naquela data foi assinado o Tratado do Rio de Janeiro, firmado entre o Brasil e o Reino de Portugal, reconhecendo nossa Independência de maneira oficial. Ainda durante o segundo reinado o dia doze de outubro foi substituído pelo Sete de Setembro, para dissociar o evento da figura do imperador, garantindo a impessoalidade do fato (impessoalidade que viria posteriormente se tornar um princípio constitucional). Fato é que só muito posteriormente o Sete de Setembro se tornou oficialmente o Dia da Independência por meio da Lei Federal número 662 de sete de abril de 1949.

O quadro que ilustra este artigo é obra do pintor Pedro Américo, executada em 1888 é uma representação artística e idealizada do fato ocorrido sessenta e seis anos antes nas proximidades do Riacho do Ipiranga em São Paulo. Por ser uma representação, não segue necessariamente o rigor histórico, mas pretende antes atender a um interesse. O quadro serve de reforço à construção de um sentimento de identidade nacional, fundamental à existência e manutenção de uma nação. A rememoração dos fatos, a celebração dos ícones e o culto aos mitos fundadores, todos são elementos constituintes do que poderíamos chamar de ‘processo de criação do sentimento de brasilidade’. Os soldados presentes no cenário representariam a Imperial Guarda de Honra de D. Pedro I, criada a partir do famoso Dia do Fico, entretanto o fardamento remete aos trajes de gala da tropa, assim como a indumentária de D. Pedro I. Em ambos os casos estariam inadequados aos eventos retratados. De igual modo, a utilização de cavalos para o trajeto Santos-São Paulo seria inviável, preferindo-se o uso de mulas. Como dissemos não é o objetivo de uma representação artística, atender aos rigorismos históricos de uma obra escrita, mas antes atender ao seu objetivo de comunicação com o observador.

O ‘Grito do Ipiranga’ pode ser entendido como o clímax de um processo de separação política entre o reino do Brasil e os reinos de Portugal e Algarve. Esta afirmação é parcialmente correta como veremos adiante, mas não pode ser associada necessariamente à conquista ou à manutenção das liberdades em nosso país. Crer na Independência como um fim em si mesma, ou que esta caminha de mão dadas com a liberdade, é fechar os olhos às transformações impostas pelo tempo, pela natureza e pelos homens. Na brilhante citação atribuída a Thomas Jefferson, alertando que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, é que planaremos sobre os eventos dos idos de 1822, buscando perceber o quanto os fatos se interligaram, criando uma tela onde podemos apreciar como que estáticos, o tempo e os entes que inauguraram os nossos frágeis tempos de liberdades.

Durante as décadas recentes, diversas obras literárias buscaram representar a Independência do Brasil como uma dádiva que não contou com a viva participação do povo. Apresentou-se por muito tempo os colonizadores portugueses exclusivamente como exploradores, usurpadores de riquezas e genocidas das etnias nativas. Reduzir o período colonial à obra de párias portugueses que legaram apenas destruição, morte, atraso e fracasso, tem criado, fortalecido e mantido um sentimento de vergonha ou de não identificação com a própria história que só tem causado danos ao país. A expressão cunhada por Nelson Rodrigues, o “complexo de vira-latas” define bem o desencanto a que foi levado o imaginário popular brasileiro.

Quando falamos em processo de independência, normalmente nos remetemos também à todas as revoltas anteriores que de alguma forma questionavam a autoridade portuguesa sobre alguma parte de nosso país. Há que se diferenciar as de viés nativista e as separatistas. No primeiro caso, buscavam se opor ao poder das autoridades locais sem pretender a autonomia da colônia como um todo. No segundo caso os objetivos eram mais abrangentes, ainda que iniciados a partir de um ponto de vista restrito aos seus locais de origem. Em todos os casos é inadequado supor a possibilidade de qualquer identificação coletiva da população ao que viria a ser o Brasil. Tínhamos regionalismos pujantes e um nacionalismo em estado de gérmen. Assim, elencamos dentre as nativistas a Revolta de Beckman (1684), a Guerra dos Emboabas (1708 a 1709), a Guerra dos Mascates (1710 a 1711) e a Revolta de Filipe Santos (1720). Dentre as separatistas temos a Inconfidência Mineira de 1789 e a Conjuração Baiana de 1798. Não é correto entender estes eventos nativistas ou separatistas como preparatórios e cumulativos para chegarmos à independência em 1822, porque de fato não eram integrados àquele sentimento de identidade nacional anteriormente citado e não representavam ainda um pensamento único e estruturante.

Nossas revoltas ocorreram paralelamente e sendo subsidiárias de eventos externos que as influenciaram. Os ideais iluministas, que apesar do controle exercido pela coroa portuguesa, vinham chegando ao Brasil trazidos pelos brasileiros que voltavam dos estudos na Universidade de Coimbra, despertavam algum senso de liberdade. A própria Independência das colônias britânicas na América do Norte em 1776, seguida da Revolução Francesa em 1789, demonstravam que o absolutismo monárquico estava sendo afrontado na prática e não mais de modo restrito ao campo das ideias. Não podemos esquecer que a Revolução Haitiana de 1804, a argentina em 1810, do Paraguai em 1811, do Chile em 1818, México e Peru em 1821, mostravam de modo inquestionável que o fenômeno das independências se tornava generalizado e que o Brasil não passaria ao largo de tantos eventos sem colher em seu próprio solo os frutos das sementes de liberdade. Nenhum destes eventos isoladamente pode explicar a Independência do Brasil, mas vistos com o necessário distanciamento, afirmam positivamente a inserção do Brasil em um cenário regional de independências.

A Ascensão do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves em dezesseis de dezembro de 1815, promovida por D. João VI, anos após a chegada da estrutura administrativa do império português ao Brasil, está diretamente relacionada à ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder na França em 1804 e a posterior ameaça de invasão a Portugal. Do ponto de vista administrativo, não faria sentido manter instalada a sede do reino de Portugal em uma colônia, daí a solução de elevar o status administrativo do Brasil a reino unido. A questão a ser destacada é que esta elevação não passaria sem deixar seu legado. A instalação de tribunais, nomeação de juízes, todo um conjunto de elementos formais da burocracia estatal, incluindo funcionários, cargos e outros acessórios passariam a fazer parte da sociedade brasileira.

Em 1820 a Revolução Liberal do Porto escancara alguns pontos importantes para a história de Portugal, mas que interferiram diretamente na história do Brasil. Desde 1815 com a prisão de Napoleão, findo o governo dos Cem Dias, ficava clara que a causa da permanência de D. João VI no Brasil, em companhia de importante parte da administração do império estava encerrada. Do ponto de vista dos remanescentes portugueses, o retorno do rei era mais que justo, era prioritário. Tal retorno vinha sendo adiado, entre outras razões de estratégia política de D. João, também porque o rei havia desenvolvido muito apreço pelo Brasil e por sua permanência aqui. Somente com o início da Revolução de 1820 é que ficou evidente que não retornar representaria a real possibilidade da perda definitiva do Reino de Portugal. Assim, em vinte e seis de abril de 1821, D. João VI chega à Lisboa, deixando D. Pedro de Alcântara como príncipe regente do Reino do Brasil.

O retorno do rei a Portugal não era a única petição dos revoltosos. A elaboração e efetiva aceitação de uma Constituição liberal, também estavam previstas e foram formalizadas em setembro de 1822. Para além da alteração do status de governo, passando de uma monarquia absolutista para uma monarquia constitucional liberal, era também pretensão das cortes portuguesas que o reino do Brasil deixasse de existir e que suas províncias se reportassem diretamente ao governo de Portugal. Se recordarmos de toda a estrutura criada e já citada para o funcionamento do Brasil enquanto Reino Unido a Portugal, compreenderemos o impacto desta medida na vida social e política do Brasil. A permanência do príncipe D. Pedro no Brasil, reforçada e entendida como uma afronta direta às cortes e seus ideais, no episódio do ‘Dia do Fico’, colocava o Brasil no centro das atenções metropolitanas. Urgiria recrudescer e impor ao Brasil as decisões partidas de Lisboa, onde D. João VI já se encontrava como rei de direito, mas não completamente de fato.

Em 1822 o Brasil se encontrava dividido quanto ao alinhamento às duas causas que se apresentavam: a aquiescência às ordenações vindas de Lisboa ou a ruptura completa em relação a Portugal. Os setores vinculados ao funcionalismo administrativo, aos tribunais locais e setores econômicos que vinham se beneficiando (e ao país) com a liberdade do comércio conseguida com o fim do ‘exclusivo colonial’, apoiavam a permanência de D. Pedro e a possível ruptura. Por outro lado, parte dos militares, algumas lideranças políticas regionais visando antes se opor à ascendência de José Bonifácio sobre D. Pedro, que alcançar objetivos maiores ao país, alinhavam-se à Portugal.

Mesmo entre os apoiadores da ruptura não existia um consenso com relação à forma de governo, havendo os que defendessem a ruptura em direção direta a uma República, outros defendendo a instauração de um reino independente sob a liderança de D. Pedro e, dentre estes últimos havia os partidários de um poder mais centralizado e outros que defendiam a elaboração de uma Constituição própria para o Brasil, além de mais autonomia para as províncias. Em meio às contendas quanto à forma administrativa, setores das províncias de Minas Gerais e São Paulo ameaçavam rebelarem-se contra a autoridade do Príncipe Regente. Nesse sentido, D. Pedro viajou àquelas províncias para retomar a ordem necessária à solução dos problemas que o país enfrentava.

Em meio à viagem pacificadora à província de São Paulo, D. Pedro possivelmente percebeu a necessidade premente de garantir a segurança das fortalezas próximas aos portos mais importantes do Brasil (Santos era o segundo mais importante, precedido pelo porto do Rio de Janeiro). Daí, seguindo em direção a Santos no dia cinco de setembro, inspecionou as fortalezas locais, dando ordens para garantir o abastecimento dos paióis e a prontidão da guarda. No dia sete, ainda a caminho de retorno a São Paulo, D. Pedro recebe as famosas cartas enviadas pela Imperatriz Leopoldina e José Bonifácio, dando conta das últimas informações sobre as atas de assembleias das cortes. Por serem relatos das atas, ainda não representavam ordens vindas de Portugal, mas certamente antecipavam a iminente dissolução do Reino do Brasil e a imposição do retorno imediato do Príncipe a Portugal.

Em meio a todas as questões internas e externas que exerciam pressão sobre o Príncipe Regente, conhecedor de todos os processos que se desenvolveram nas antigas colônias espanholas a seu tempo, sabendo por José Bonifácio da iminência de uma revolução que ocorreria à revelia de sua vontade caso se submetesse à cortes, D. Pedro possivelmente se viu em um ‘ponto sem retorno’. A Independência do Brasil ocorreria e quanto a isso não haveria remédio. Vejamos as palavras de José Bonifácio em sua carta:

“(...) A revolução já está preparada para o dia de sua partida. Se parte, temos a revolução do Brasil contra Portugal, e Portugal, atualmente, não tem recursos para subjugar um levante, que é preparado ocultamente, para não dizer quase visivelmente. Se fica, tem, Vossa Alteza, contra si, o povo de Portugal, a vingança das Cortes, que direi?! Até a deserdação, que dizem já estar combinada. Ministro fiel que arrisquei tudo por minha Pátria e pelo meu Príncipe, servo obedientíssimo do Senhor Dom João VI, que as Cortes têm na mais detestável coação, eu, como Ministro, aconselho a Vossa Alteza que fique e faça do Brasil um reino feliz, separado de Portugal, que é hoje escravo das Cortes despóticas. (...) Fique, é o que todos pedem ao Magnânimo Príncipe, que é Vossa Alteza, para orgulho e felicidade do Brasil.
E, se não ficar, correrão rios de sangue, nesta grande e nobre terra, tão querida do seu Real Pai, que já não governa em Portugal, pela opressão das Cortes; nesta terra que tanto estima Vossa Alteza e a quem tanto Vossa Alteza estima.”

A pacificação das desordens em Minas Gerais e São Paulo, a recepção de um abaixo assinado contendo mais de oito mil assinaturas (volume extraordinário de adesões voluntárias para a época), os conselhos de Bonifácio e da Imperatriz, a condição de D. João VI em Portugal, a possibilidade de uma revolução interna que poderia conduzir o Brasil ao esfacelamento de seu território, todas as questões ora apresentadas não deixaram a D. Pedro outro caminho que não fosse agir. “O momento não comporta mais delongas ou condescendências” dizia Bonifácio no início de sua carta, e de fato nada mais restaria a fazer senão lançar fora o adorno de fita azul e branca, representativa de Portugal que seguia preso a seu chapéu e bradar aos membros de sua guarda e acompanhantes: “Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro promover a liberdade do Brasil. Independência ou Morte!”. Estava feita, ainda que de maneira simbólica, mas profundamente representativa, a Independência do Brasil.

Refutando as teses que defendem que o processo de Independência do Brasil foi passivo e pacífico, entre 1822 e 1825 ocorreram distúrbios, revoltas e enforcamentos. Bahia, Piauí, Pernambuco, Maranhão e Grão-Pará foram palcos de enfrentamento entre as forças revoltosas locais e as tropas leais a D. Pedro. A independência não se resumiu a um acordo em família e ao pagamento de uma indenização a Portugal. Lutas ocorreram, sangue brasileiro foi derramado e o legado das lutas não pode ser esquecido, mas antes de tudo exaltado.

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”

é parte de uma poesia de Cecília Meireles. Liberdade não é um lugar de descanso, liberdade é um exercício ao longo do próprio caminho rumo ao futuro. Nosso sonho de liberdade tem sido alimentado e construído há séculos, foi buscado e defendido por muitos brasileiros antes que nós sequer viéssemos a existir. A liberdade que D. Pedro jurou defender, liberdade que uma vez conquistada, tantas vezes foi ameaçada e defendida. Liberdade, palavra tão abrangente que carrega em si múltiplas possibilidades: de pensamento, de expressão, de fé, de ir e vir, enfim, palavra tão atual e mais uma vez ameaçada. “Cadê a nossa liberdade? Eu prefiro morrer do que perder minha liberdade” disse o Presidente Bolsonaro se referindo à imposição de um suposto passaporte vacinal. Nosso Presidente em sua fala já entendera que vida sem liberdade não é vida, é simulacro de morte. Onde está a liberdade sonhada por José Bonifácio e defendida por D. Pedro? O que faremos nós, herdeiros de um legado tão nobre diante de tantas e insanas ameaças às nossas liberdades?

O ano de 2022 se apresenta como ‘um ponto sem retorno’, ou defendemos as nossas liberdades ou o fracasso, a corrupção, a dilapidação do erário nacional em nome de uma utopia despótica e castradora será nossa realidade. A liberdade já foi conquistada, mas deve ser continuamente protegida para não ser perdida.

A nós não resta outro caminho que não seja agir, pelas vias democráticas, com senso de identidade nacional, com amor e patriotismo, mas agir. Findas todas as possibilidades, não havendo horizonte além da escravidão e da opressão, ainda assim nos restará por divisa “ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!”.

Vivas o Brasil! Salve Sete de Setembro!


Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N. 18 – ISSN 2764-3867


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