Uma mensagem assinada com sangue pelo povo da cruz
- Danielly Jesus
- 16 de abr.
- 9 min de leitura

“E, havendo aberto o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram.
E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?
E foram dadas a cada um, compridas vestes brancas e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até que também se completasse o número de seus conservos e seus irmãos, que haviam de ser mortos como eles foram.” (Apocalispe 6.9-11).
Eu pensei muito no que abordar neste artigo; tantos acontecimentos políticos e geopolíticos que sobram temas para dissecar nessas linhas que a Revista me proporciona (a quem agradeço publicamente pela confiança). Mas gostaria de tratar sobre um assunto importante: a perseguição aos cristãos.
“Ah, mas isso existe há tempos”. Concordo. Há mais de dois mil anos o cristianismo é ostracizado nos quatro cantos do planeta. Contudo, Nosso Senhor Jesus nos preveniu sobre isso: “... vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus.” (João 16,b). Ou seja, quem deseja eliminar os cristãos pensa estar fazendo a vontade de Deus. E assim, nossa história vem sendo escrita com sangue.
Estevão foi o primeiro mártir; homem sábio e cheio do Espírito Santo, foi terrivelmente injustiçado. Testemunhas falsas corroboraram com as mentiras ditas pelos membros da sinagoga e levaram-no para julgamento. Após um longo discurso, onde não negou sua fé, foi lançado para fora da cidade e apedrejado.
Com os apóstolos de Cristo não foi diferente: Tiago, o Maior, irmão de João, foi o primeiro dos doze a ser assassinado, no reinado de Herodes Agripa; Felipe, que evangelizou na Ásia Setentrional (atual Rússia), foi açoitado e crucificado. Mateus, que foi para a Etiópia, foi imolado com uma albarda (espécie de machado).
Tiago, o Menor, irmão de Jesus, faleceu aos 94 anos, com seu crânio esmagado; Matias, que ocupou o lugar de Judas, terminou seus dias, decapitado. André, irmão de Pedro e um dos primeiros discípulos de Nosso Senhor, foi crucificado em forma de X. Marcos, o escritor do evangelho que leva seu nome, foi arrastado pelas ruas de Alexandria, no Egito, até que sua carne fosse rasgada.
Pedro, o pescador, um dos mais próximos de Jesus, foi crucificado, dizem, de cabeça para baixo, a pedido próprio, pois não se achava digno de morrer como Nosso Senhor. Paulo, aquele a quem Jesus apareceu no caminho para Damasco, foi decapitado.
Judas, irmão de Jesus e Tiago, foi crucificado. Bartolomeu, um dos discípulos menos conhecido, que pregou até na Índia, também foi crucificado. Tomé, chamado Dídimo, atravessado por uma lança. Lucas, evangelista e médico, foi enforcado na Grécia. Simão, o Zelote, evangelizou na Grã-Bretanha e lá foi crucificado.
“Mas como que Jesus não os protegeu?”: esta é a pergunta daqueles que não crêem, e não é um questionamento sem resposta. Jesus disse: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.” (João 15.18-19). “... Se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa.” (João 15.20b)
Jesus não prometeu vida sem qualquer tipo de problema ou dificuldade; e segui-Lo significa abdicar de si próprio. A verdade é que aquele que se predispõe a seguir a Cristo precisa entender o seguinte: não tem como ter duas vidas; ou eu tenho a minha própria, ou a Dele. E aqueles que perderam a sua vida por amor a Ele estão em melhor situação do que nós.
“Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.” (Mateus 16.25)
Humanamente falando, seguir a Cristo é uma loucura; imagine abdicar dos meus desejos e vontades para entregar minha vida – e alma – para uma divindade e sofrer ao invés de ser recompensado? O apóstolo Paulo entendia perfeitamente isso:
“Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.” (1° Coríntios 1.18)
Aquele que renuncia a tudo pelo Reino dos Céus entende que sua recompensa jamais virá nesta terra, mas na Eternidade. Não é errado buscar uma vida confortável, afinal “E também que todo o homem coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho; isto é um dom de Deus.” (Eclesiastes 3.13). Mas todo aquele que entrega a sua vida a Jesus sabe que o bem mais precioso é a salvação da sua alma.
Farei um salto histórico dos tempos da igreja primitiva para a Revolução Francesa. Aquele período que hoje é aclamado como o mais iluminado, onde o homem se separou da fé e passou a idolatrar a razão, na verdade, foi um dos mais sanguinários. A guilhotina, que leva este nome graças ao médico Joseph-Ignace Guillotin, foi a “máquina de matar” quem discordava do sistema. E os cristãos não foram poupados.
As Carmelitas de Compiègne foram dezesseis religiosas do mosteiro carmelita de Compiègne assassinadas por revolucionários franceses do Comitê de Salvação Pública que as levaram à guilhotina por ódio à religião, no segundo período do Terror da Revolução Francesa, no dia 17 de julho de 1794, no local hoje denominado "Place de la Nation", na época "Place du Trône Renversé". A lei revolucionária de 1790 forçava o fechamento do convento, o que acarretou a redistribuição das freiras em quatro casas separadas. Com muita “liberdade, igualdade e fraternidade”, as religiosas ainda tiveram que escolher entre assinar o “juramento revolucionário” ou sofrer a deportação.
A priora carmelita Teresa de Santo Agostinho fomentou entre as irmãs da sua comunidade a fidelidade aos preceitos da vida conventual, que elas continuaram a praticar na clandestinidade. Entretanto, algumas denúncias às autoridades revolucionárias levaram a uma investigação que juntou “provas de vida conventual”: as carmelitas foram assim acusadas de “complô para restabelecer a monarquia e extinguir a República”.
As religiosas que foram presas se negaram a assinar novamente o juramento revolucionário e, acusadas de “conspiração contra a revolução”, foram amarradas e levadas a Paris em duas carroças. Na capital francesa, foram trancadas na prisão da Conciergerie. Foram condenadas à morte no dia 17 de Julho de 1794.
Em uma carroça, foram levadas para seu destino; no caminho, entoavam Te Deum, hino católico cuja redação final é tradicionalmente datada do ano 387 d.C. quando da ocasião do batismo de Santo Agostinho por Santo Ambrósio. O hino é usado principalmente na liturgia católica, como parte do Ofício de Leituras da Liturgia das Horas e outros eventos solenes de ações de graças.
Eis um trecho:
“Dignai-Vos, pois, assistir a Vossos servos, que haveis remido com Vosso preciosíssimo sangue. Fazei que sejam do número dos Vossos santos na glória. Salvai o Vosso povo, Senhor, e abençoai a Vossa herança (…) Dignai-Vos, Senhor, neste dia conservar-nos sem pecado. Compadecei-Vos de nós, Senhor! Compadecei-Vos de Nós. Desça sobre nós a Vossa misericórdia, segundo a esperança que em Vós pusemos. Em Vós, Senhor, esperei; jamais serei confundido.”
Aos pés da guilhotina, iniciaram o Veni Creator Spiritus:
“Vinde, Espírito criador,
visitai as Vossas almas;
enchei com a graça do alto
os corações que criastes.”
Uma a uma, pedindo a última bênção da priora, subiram ao cadafalso e foram martirizadas.
A realidade ocidental é um pouco melhor em termos de liberdade religiosa do que era há cem, duzentos anos. E isso faz com que nossos olhos estejam fechados para o que acontece na Janela 10-40.
A Janela 10-40 é uma faixa da terra que se estende do Oeste da África, passa pelo Oriente Médio e vai até a Ásia. A partir da linha do Equador, subindo forma um retângulo entre os graus 10 e 40. Calcula-se que até hoje menos da metade da população mundial com as suas etnias e línguas tenham sido confrontadas com o evangelho.
Eu, particularmente, não fazia ideia de que esta delimitação existia até 2006. Neste ano, a cantora evangélica Fernanda Brum lançou o álbum “Profetizando às Nações”, o segundo mais vendido da sua carreira. O disco tinha a seguinte missão: contar à igreja ocidental o que ocorre com cristãos pelo oriente. E foi quando eu descobri que não sou crente.
Caro leitor, não me leve a mal; sou nascida e criada na igreja. Mas quando digo que “não sou crente” me refiro ao fato de que eu ainda “não resisti até ao sangue” (Hebreus 12.4) pelo Evangelho de Cristo. E, penso eu, que esta é a condição da igreja no ocidente.
Temos mordomias, regalias, bíblias com diversas traduções a nosso dispor, devocionais, pregações de todo o tipo e para todos os gostos, podemos ir à Igreja sem sermos apedrejados ou fuzilados, podemos exibir terços, crucifixos ou simplesmente a cruz. Mas temos Cristo? E isso traz a seguinte reflexão: se não estamos conseguindo viver para Ele, como teremos condições de morrer por Ele?
O pior martírio ocorrido nos últimos tempos completou dez anos em 15 de Fevereiro: a degolação de 21 cristãos no litoral de Sirte, na Líbia, no Mar Mediterrâneo, pelas mãos do ISIS. As águas que levaram os apóstolos para pregar o Evangelho foram as mesmas que receberam o sangue dos servos de Cristo.
Na época, estava no início da gestação do meu filho; não procurei saber de maiores detalhes porque estava poupando minha mente, pois me senti muito mal fisicamente nos primeiros meses de gravidez. E depois, cumprindo meu papel mãe, não recordei de pesquisar sobre o caso.
Mas agora, dez anos depois, eu fiz meu papel de jornalista e fui pesquisar. Dos 21, 20 deles eram da Igreja Coopta do Egito e moravam em uma pequena cidade ao sul do Cairo, chamada Minya. O 21° era proveniente de Gana, e também era cristão, provavelmente protestante.
Esses homens eram trabalhadores comuns, operários da construção civil que deixaram o Egito em busca de melhores oportunidades para sustentar suas famílias. Foi em Sirte, entre os meses de Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015, que eles foram sequestrados por milícias do Estado Islâmico. O mundo só voltaria a saber deles por ocasião do seu martírio. A morte dos 21 cristãos foi registrada em um vídeo divulgado pelo grupo terrorista, denominado “Uma mensagem assinada com sangue para o povo da cruz”.
Eu procurei este vídeo, e com muita dificuldade, encontrei. Assisti na íntegra. A cada cena, um nó na garganta. Lágrimas insistiram em cair. Porque uma coisa é tratar de martírio em tempos longínquos, os quais não vimos, e outra bem diferente é assistir em nossos dias, com nossos próprios olhos.
O vídeo começa com a chegada dos cristãos e dos soldados jihadistas na praia, na costa de Wylãyat, Tarãbulus; os cristãos, descalços e vestindo macacões laranja, semelhantes aos utilizados nos presídios americanos, e os islâmicos, de preto e toucas ninja. São alinhados e postos de joelhos. Na legenda, a seguinte frase: “O povo da cruz, os seguidores da hostil igreja egípcia”
O maioral toma a palavra. Escreverei seu discurso ipsis literis:
“Louvado seja o Deus Forte e Poderoso
Que a paz esteja com aquele que garantiu a família, que Deus proteja os mundos. Ó povo, vocês nos viram nas colinas de Sam e na planície de Dabiq, abates de cabeças que sempre carregaram a ilusão da cruz. Eu absorvi o ódio pelo islamismo e pelos muçulmanos. Hoje estamos no sul de Roma, na terra do islamismo, a Líbia, enviando outra mensagem. Ó Cruzados, segurança é o teu desejo. Principalmente porque vocês estão lutando contra todos nós, nós lutaremos contra todos vocês, até que a guerra termine. Então jesus, que a paz esteja com ele, desça. Ele quebra a cruz, mata o porco e cobra o imposto (citação do Alcorão) Este mar em que vocês esconderam Osama bin Laden, que Deus o aceite, juramos por Deus que será coberto com seu sangue (cristão)”
Em seguida, os rostos dos cristãos são exibidos em silêncio. Alguns estão chorando e orando, outros, estão chamando por Jesus, e os demais, firmes. Depois, são jogados ao chão. Uma música árabe toca ao fundo enquanto os jihadistas tomam suas facas e degolam-nos vivos. No áudio, é possível ouvi-los clamando por Jesus em sua própria língua.
No fim do massacre, suas cabeças foram colocadas sobre seus próprios corpos; o que me chamou a atenção foram seus semblantes: não havia desespero, não havia dor. Pareciam estar dormindo. Jesus os recebeu.
O líder tomou a palavra novamente, agora com as mãos sujas de sangue:
“Conquistaremos Roma, se Deus quiser. Esta é a promessa do nosso profeta. Que Deus o abençoe e lhe dê paz.”
A última cena: o Mar Mediterrâneo. Não mais azul. Vermelho.
Confesso que não foi fácil assistir. Sinto um nó na garganta apenas por pensar da dor que sentiram. Contudo, o que vi me levou a uma profunda reflexão sobre meu próprio estado espiritual: como tenho vivido?Será que tenho feito o que agrada a Deus? E se radicais invadissem minha casa, eu teria coragem de permanecer ou negaria minha fé?
“E as famílias?”, pode questionar o leitor. Enlutadas, feridas, machucadas. Receberam os corpos apenas três anos depois. Mas felizes. Parece inacreditável, mas é isso que eles relatam.
Encontrei várias entrevistas e documentários com as famílias dos 20 cristãos egípcios. Os depoimentos no geral são: “estou feliz porque tenho um mártir na família”, “graças a Deus ele não negou a Jesus”, “eu tenho orgulho dele”. Os membros do ISIS devem ter imaginado que veriam familiares com ódio e sede de vingança, mas eles encontraram cristãos autênticos que perdoaram todo o mal feito.
Difícil de acreditar, não é mesmo? Mas é real.
Temos em nossos dias cristãos ocidentais vendendo suas almas por um prato de lentilha, por uma noite, por um momento; e do outro lado, cristãos que preferem ser degolados vivos a apostatarem de sua fé.
Que Nosso Senhor Jesus Cristo tenha misericórdia de nós e nos ensine a como servi-Lo, porque até o dia de sua vinda, o número de mártires terá de se completar. Seremos algum deles? Não sabemos. Mas como disse Paulo: “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor.” (Romanos 14.8)
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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 52 edição de Março de 2025 – ISSN 2764-3867
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